Diário do Alentejo

Noventa e quatro por cento do Baixo Alentejo “é suscetível à desertificação”

24 de março 2023 - 10:00
Trinta e oito por cento do Baixo Alentejo com suscetibilidade crítica, 35 por cento muito elevada e 21 por cento elevada
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Os solos do Baixo Alentejo têm vindo, nos últimos anos, a registar “um elevado grau de degradação”, como consequência da desertificação. Dados apresentados no final da semana passada pelo REA Alentejo, um projeto promovido pela Associação de Defesa do Património de Mértola, dão conta que cerca de 94 por cento do Baixo Alentejo “é suscetível à desertificação”. Dos diversos fatores que explicam o fenómeno, destacam-se as alterações climáticas e o uso intensivo do solo.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Cerca de 94 por cento da NUT Baixo Alentejo (No-menclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) “é suscetível à desertificação”, segundo as conclusões dos estudos realizados pela equipa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) que coordena o Centro Experimental de Erosão de Solos da Herdade de Vale Formoso, em Mértola, organismo público afeto à Direção Regional de Agricultura do Alentejo.

 

A referida NUT, que compreende 13 dos 14 concelhos do distrito de Beja (Odemira não está incluído), “apresenta 38 por cento do seu território com suscetibilidade crítica à desertificação, 35 por cento muito elevada e 21 por cento elevada, e apenas cinco por cento moderada e um por cento reduzida”.

 

Já na margem esquerda do Guadiana, na região de Mértola, “os valores sobem quase aos 100 por cento, com 96 por cento da área suscetível à desertificação – 32 por cento crítica, 37 por cento muito elevada e 27 por cento elevada”.

 

As conclusões foram divulgadas na passada sexta-feira no decorrer da apresentação do projeto REA Alentejo, que teve lugar no Parque Biológico da Cabeça Gorda, em Beja. Promovido pela Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), em parceria com várias organizações académicas e governamentais, o REA Alentejo tem como principal objetivo criar um “modelo replicável que permita restaurar a produtividade agrícola e florestal nas zonas semiáridas do sudoeste de Portugal, que potencie uma melhoria da saúde do solo, do funcionamento dos ecossistemas e, consequentemente, da qualidade de vida das comunidades rurais”.

 

Segundo adiantou a investigadora da NOVA FCSH, Maria José Roxo, no decorrer da sessão, são diversos os fatores que explicam o fenómeno da desertificação, sendo as alterações climáticas um dos mais significativos.

 

De acordo com a também responsável pelo Centro Experimental de Erosão de Solos da Herdade de Vale Formoso, “a aridez tem aumentado, em consequência das temperaturas mais elevadas e devido ao declínio acentuado na precipitação nas últimas décadas, o que contribui para uma alteração na estrutura dos solos e na quantidade e qualidade dos recursos hídricos”.

 

Entre 1940 e 2022, segundo informação divulgada na apresentação, os dados recolhidos pela Estação Meteorológica de Vale Formoso permitiram “traçar um cenário de diminuição acentuada na média de precipitação anual, por décadas”. Se na década de Quarenta do século passado “o valor médio anual de precipitação era de quase 800 milímetros”, na década de 2010 “diminuiu para 474,2 milímetros”.

 

E em Mértola, em particular – “onde é fácil ver a degradação do montado” –, “é clara a diminuição da precipitação registada”, tendo passado de uma média anual de precipitação de 601 milímetros entre 1940 e 1970 para 446 milímetros nos últimos 30 anos, de 1991 a 2021.

 

“Este decréscimo [de precipitação] é muito concreto, quer no inverno, quer na primavera”, sublinhou Maria José Roxo, adiantando que “neste momento os agricultores estão com falta de água” e “se não chover nos próximo tempos vai ser, novamente, uma catástrofe em termos de produtividade”.

 

A investigadora frisou, ainda, que de dezembro de 2022 a fevereiro de 2023 choveram 200 milímetros, ou seja, “em três meses, numa estação do ano, choveu quase o mesmo do que no ano anterior”. Esta “enorme irregularidade” na precipitação e na distribuição pelas estações do ano “contribui para uma grande incerteza em termos agrícolas e para o desencadear de episódios de erosão que favorecem a degradação dos solos quando ocorrem chuvas intensas”. “A seguir a um ano de seca extrema, o que é que um agricultor faz? Pensa: isto não pode continuar assim, portanto, lavra, lavra, e de repente tínhamos a serra completamente lavrada, e o que é que aconteceu? Choveram aqueles 200 milímetros, mas nada fica retido devido à erosão”, esclareceu.

 

O uso do solo, através da agricultura intensiva e superintensiva, como “o olival intensivo e superintensivo, mas não só”, é outro dos fatores importantes, assim como a criação de gado, referiu a especialista em desertificação, sublinhando que “grande parte do solo está a ser mobilizado, mas não de forma a ser conservado”.

 

“É fácil perceber a dinâmica que esta área tem em termos de culturas intensivas e superintensivas. Tem extensões e extensões de implantação nestes solos que são de boa qualidade, mas que vão ficar também com problemas quando tiverem que reformular ou retirar estas culturas”, alertou.

 

CRIAÇÃO DE GADO EXIGE "GESTÃO MUITO BEM PONDERADA"

No que diz respeito à criação de gado, Maria José Roxo defendeu que é necessário “uma gestão muito bem ponderada”, em “função daquilo que são as especificidades geográficas do território, ou seja, o relevo, a topografia, os solos, o tipo de clima, e esses elementos é que vão dizer o número de cabeças que posso ter”, uma situação que não se tem “verificado nos últimos anos”, devido “às políticas agrícolas” definidas. A investigadora considera, assim, que “o potencial endógeno, os recursos naturais, têm de ser utilizados de uma forma inteligente, de uma forma racional”, sendo que “uma política que é muito boa no Alto Alentejo pode ser um completo desastre no Baixo Alentejo”.

 

“Temos olival intensivo e superintensivo desde o Baixo Alentejo até Trás-os-Montes, passando por Santarém. É inacreditável como uma política, de repente, se aplica sem ter esta noção territorial, de conhecimento, de ordenamento, de estratégia para o território e para o futuro num cenário de mudança climática, e este é o nosso ‘cavalo de batalha’”, disse, sublinhado, ainda, que “as políticas agrícolas são formatadas em função daquilo que é uma Europa que não é a mediterrânea”.

 

“Depois de termos aplicado metodologias para descobrir qual é a sensibilidade ambiental à desertificação, e tivemos em conta parâmetros como a qualidade do clima, da vegetação e do solo, é fácil ver a quantidade de áreas críticas que temos no Baixo Alentejo”, reforçou a professora catedrática, afirmando que “que o crítico é bastante grave”.

 

“O crítico quer dizer que já terei dificuldade em recuperar, e se juntar o crítico, o muito elevado e o elevado, tenho, verdadeiramente, um problema em termos do Baixo Alentejo”, acrescentou, sublinhando, no entanto, que “não quer dizer que não haja soluções”.

 

“O Baixo Alentejo tem 94 por cento e a margem esquerda 96 de sensibilidade ambiental para ter o fenómeno da desertificação. Mas tenho uma área crítica muito mais reduzida, são trinta e tal por cento, e aqui o que posso implementar são medidas de regeneração, mas isso implica termos conhecimento científico, e depois saber que a solução para o Monte do Vento pode ser uma, mas para Barrancos pode ser outra, e é isso que estamos a trabalhar”.

 

E acrescentou: “Sabemos que há uma relação muitíssimo grande entre desertificação e mudanças climáticas, e um dos nossos objetivos é recuperarmos ecossistemas, recuperarmos o montado, porque quanto mais recuperarmos os ecossistemas mais absorvemos carbono, mais melhoramos o solo. Se melhorarmos o solo em matéria orgânica teremos mais infiltrações, mais água subterrânea e mais resiliência às secas. A saúde do solo é um dos fatores que verdadeiramente nos preocupa. O fator solo é um fator chave”.

 

O REA Alentejo, que terá como áreas de intervenção o Centro de Estudos e Sensibilização Ambiental do Monte do Vento e a Herdade de Vale Formoso, ambos inseridos no Parque Natural do Vale do Guadiana, e o Parque Biológico da Cabeça Gorda e o Perímetro Florestal de Barrancos, “áreas de elevado Risco de Erosão Hídrica”, inseridas na Reserva Ecológica Nacional terá, assim, consideram os seus promotores, “um papel importante no combate a estes problemas, porque vai permitir pôr em prática uma série de técnicas de reabilitação de ecossistemas num contexto de alterações climáticas, como a diversificação do montado através da plantação de bosquetes, recuperação de linhas de água, melhoramento de pastagem com mobilização mínima e gestão do pastoreio”. Até ao final do ano, o projeto prevê, por exemplo, “beneficiar 81,1 hectares com ações de restauro de ecossistemas mediterrânicos” nos três concelhos de atuação – Barrancos, Beja e Mértola.

 

 "NÃO EXISTE UM OLHAR, EM TERMOS DE POLÍTICA PÚBLICA, A MÉDIO/LONGO PRAZO"

“Propomos um conjunto de estratégias que passam muito pela conversão de sistemas que estão completamente desajustados da realidade climática, do solo”, sublinhou, por sua vez, María Bastidas, coordenadora do REA Alentejo, frisando, contudo, que não cabe às organizações não governamentais “resolver o problema da desertificação em Portugal” e é isso que gostaria “que o Estado também percebesse”.

 

“Desenvolvemos um projeto para tentar implementar soluções. Agora que as soluções existem, cabe às políticas públicas incluir esse conhecimento de tal forma a acelerar a adoção dessas práticas e direcionar, nesse sentido, os apoios e as ajudas, portanto, o nosso projeto será bem-sucedido se conseguir chegar a quem realmente pode fazer com que isto tenha impacto”, referiu, ainda, a técnica da ADPM, salientando que todas as medidas a nível governamental que têm vindo a ser implementadas na região “são medidas reativas”.

 

“Por exemplo, este território tem sempre, de uma forma cíclica, períodos de escassez, portanto, necessita de um olhar estratégico. Se estamos em escassez, então temos de conseguir aprovisionarmo-nos nas ocasiões mais ou menos razoáveis, em termos de comida para os animais, de água, de condições”, adiantou, afirmando que “não existe um olhar em termos de política pública a médio/longo prazo”. “Estamos sempre em cima da situação. Há um período de seca, não há alimentação para os animais, muitas vezes não há água, e quando já passou um mês e continuamos nesta situação é que sai uma medida, é sempre assim, todos os anos”, lamentou.

 

Já Cristina Branquinho, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, afirmou que a existência de árvores em áreas semiáridas “é muito importante”, porque “quanto mais produtividade vegetal mais carbono fixamos, quando fixamos mais carbono conseguimos mitigar o efeito das alterações climáticas. Portanto, quando temos mais estrutura florestar temos mais biodiversidade, como temos mais biodiversidade vamos ter menos problemas de solo, de erosão, logo, temos menos perda de nutrientes e menos desertificação”.

 

A investigadora sublinhou, ainda, a importância “de existir uma boa base científica para que se possa dizer, de facto, que aquela é a solução para o problema”, e lembrou que as zonas desertificadas “têm pouca população, poucos votantes, e grande parte são idosos, pouco informados”, pelo que “é difícil terem impacto nas decisões políticas”.

 

“Isso é um problema gravíssimo, porque quando, por exemplo, há seca em Viseu, já é um problema grave, mas quando é só aqui no Alentejo, é como se as pessoas já estivessem habituadas. O maior número de votantes é urbano, perfeitamente urbano, e já quase não tem passado rural. Há cada vez mais um desligamento entre o urbano e o rural. Uma perceção do ambiente rural completamente desfasada da realidade ”.

 

O REA Alentejo é desenvolvido em parceria com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Junta de Freguesia da Cabeça Gorda e Câmara Municipal de Barrancos, em colaboração com o Centro de Experimentação do Baixo Alentejo.

 

CENTRO EXPERIMENTAL DE VALE FORMOSO

O Centro Experimental de Erosão de Solos de Vale Formoso, o mais antigo da Europa em funcionamento, foi instalado na herdade de Vale Formoso, pertencente ao Estado, no início da década de Sessenta do século passado, por iniciativa de Ernesto Baptista d’Araújo e com financiamento do II Plano de Fomento.

 

O centro visava o estudo e qualificação das perdas do solo agrícola por erosão hídrica e do desenvolvimento e implementação de medidas e práticas de conservação do solo, uma vez que os solos da serra de Serpa e de Mértola já apresentavam um elevado grau de degradação devido à contínua e extensiva produção de cereais de inverno, com total predominância do trigo.

 

A herdade de Vale Formoso, localizada em plena serra de Mértola, teve inicialmente a designação de Campo Experimental de Vale Formoso, inaugurado em fevereiro de 1930.

Comentários