Diário do Alentejo

O senhor rico daquela Herdade

23 de janeiro 2023 - 14:00
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Texto José d’Encarnação, arqueólogo

 

Surpreendeu-nos o achamento de uma placa romana na herdade da Fonte dos Frades, em Baleizão. Não tanto pelo seu tamanho, mas sim pelo singelo texto latino que ostentava, susceptível de nos trazer bem curiosas informações!

 

E O QUE DIZ O TEXTO? 

Muito pouco. Aliás, até dava a impressão que não houvera grande cuidado em preparar o suporte, porque a placa, de mármore cinzento de Trigaches, com 18 centímetros de largura e 38 de comprimento, nem sequer fora geométrica e cuidadosamente feita à esquadria: as arestas não são retilíneas e a espessura varia entre nove e 12 centímetros. Somente a face com letras fora alisada para as receber. Uma primeira conclusão se impôs desde logo: destinara-se-lhe o frontispício do monumento funerário e, por isso, só essa face dianteira se veria. Monumento funerário? Sim, um jazigo de família e já vai explicar-se porquê. É que mui claramente se lê o seguinte:

C · COSCONIVS C · F · GAL · H · S ·E

Poderia lá haver algo mais simples?! Desdobrando as siglas e abreviaturas, como é habitual fazer-se, o texto latino queria dizer: C(aius) · COSCONIVS / C(aii) · F(ilius) · GAL(eria) · H(ic) · S(itus) · E(st)

Que, traduzido para a nossa língua, reza o seguinte: “Aqui jaz Gaio Coscónio, filho de Gaio, da tribo Galéria”.

Sim, perguntar-se-á: o nome dum morto; e daí? Daí três coisas haver a indagar: a) Poder-se-á ter uma ideia de quem foi o senhor? O rico proprietário da casa de campo romana que aí existiu ou apenas um dos seus trabalhadores? b) E por que é que se está já a falar em jazigo de família? c) Finalmente, ele foi dos primeiros romanos a estabelecerem-se nos arredores de Pax Iulia ou terá mesmo nascido cá? Um texto tão minúsculo “aguentará” tantas perguntas? E não começaremos, então, a navegar num mar cheio de suposições apenas? É o que vamos ver, pois se justifica plenamente essa suspeita!

 

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QUEM FOI GAIO COSCÓNIO?

Dois elementos do seu nome nos explicam qual fora a sua condição social e política: o facto de ser mencionado o nome do pai significa que era filho legítimo; a menção da tribo em que estava inscrito significa que era cidadão romano de pleno direito. A tribo Galéria, escolhida por César e pelo imperador Augusto para as cidades em cuja formação houvera intervenção sua, foi a de Pax Iulia e, por isso, Coscónio era cidadão desta colónia.

 

Como dispomos de elencos bastante fiáveis dos nomes romanos documentados, poder- -se-á fazer esta pergunta: a família Coscónia tem outros testemunhos na cidade, na região, no conjunto da Lusitânia ou no seio da Hispânia romana? Estamos ainda num horizonte populacional restrito em que se torna possível pensar que um Coscónio identificado em Mérida, capital da Lusitânia, pode ter algum relacionamento familiar com este Coscónio a que nos referimos.

 

Anote-se, claro, que a resposta se reveste apenas de possibilidade. Basta compararmos com os nossos dias: nem todos os Gonçalves da mesma cidade são necessariamente parentes; e mesmo em relação aos Gonçalves Figueira haverá que ter cuidado, pois coincidências poderão ser… coincidências apenas!

 

O certo é que – como se teve ocasião de sublinhar quando, em 1997, se publicou o estudo deste monumento (estudo acessível em http://hdl.handle.net/10316/104374) – não chegam à dezena os indivíduos atestados com este nome na Hispânia romana e ocuparam, nas respectivas comunidades, lugares de relevo político-social. Este facto induz-nos a pensar que terão origem externa à Península e permite, inclusive, a hipótese de estarmos perante uma família que veio de fora e aqui se estabeleceu. Não pode garantir-se que Gaio Coscónio seja um dos colonos iniciais; será, pelo menos, um dos seus primeiros descendentes.

 

E como é que tal pode ser afirmado? Pela forma como Gaio Coscónio está identificado, sem o cognome, elemento do nome romano que só foi introduzido na identificação epigráfica das pessoas romanas da Hispânia a partir de finais do século I a. C..

 

PROPRIETÁRIO DA VILLA

E porque se diz ser esta placa para um jazigo de família, quando nela há somente um nome gravado? A resposta é simples: basta fazer, mesmo na atualidade, uma visita aos nossos cemitérios, para se verificar que, boa parte das vezes, no frontispício do jazigo se menciona em exclusivo o nome do primeiro que lá foi sepultado ou, dizendo doutra forma, do antepassado mais ilustre. Assim o terá sido Gaio Coscónio. Tem a herdade da Fonte dos Frades vários topónimos no seu interior. Sabe-se, por exemplo, que a placa foi encontrada junto ao Tanque dos Arrozes, no decorrer de trabalhos agrícolas, e guardada na Horta do Padre.

 

Ora, nessa mesma herdade se identificou, também durante trabalhos agrícolas, uma villa romana a que foi dado o nome de D. Pedro. Fernando de Almeida encarregou os arqueólogos Maria e Manuel Maia de aí procederem à necessária intervenção arqueológica. Os surpreendentes resultados obtidos (mosaicos policromados, as termas, o vasto peristilo interior da casa senhorial…) foram por eles minuciosamente dados a conhecer na comunicação que fizeram, em outubro de 1972, nas II Jornadas Arqueológicas, cujas atas a Associação dos Arqueólogos Portugueses publicou em 1974: II volume, p. 121-138. Trata-se, seguramente, de uma das casas rurais romanas mais imponentes do aro de Pax Iulia!...

 

Não se fez, por enquanto, o relacionamento em termos espaciais de todos os dados em presença, até porque o recente levantamento patrimonial efectuado na zona pela ERA Arqueologia aí revelou grande abundância de vestígios arqueológicos; contudo, é bem provável que Gaio Coscónio tenha sido, por conseguinte, o primeiro proprietário rico dessa villa hoje dita “de D. Pedro”.

 

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