Diário do Alentejo

O novo cantar das velhas Janeiras

06 de janeiro 2023 - 11:00
O cante tradicional de Natal continua a ser visto com “olhos depreciativos”
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Sem qualquer registo desde o seu começo, a tradição alentejana manda que nas vésperas de Natal, Ano Novo e Reis se cante, seja ele com versos e quadras pré-feitos e passados oralmente ou à desgarrada. O bater de porta em porta “já são coisas de outro tempo”, mas o cantar, nesta época do ano, para comemorar e agradecer, não se altera nas aldeias e vilas alentejanas. O “Diário do Alentejo” esteve em Grandaços e Panóias, no concelho de Ourique, a recuperar a tradição e a ouvir cantar ao Menino, às Janeiras e aos Reis.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

A tarde já vai longa. O dia solarengo dá agora lugar a uma noite que se adivinha fria. Dentro da pequena igreja de Grandaços a única badalada do sino que marca as 18:30 horas dá início a mais um cantar ao Menino, às Janeiras e aos Reis. De capote alentejano envergado, Pedro Mestre e José Diogo Bento começam a encher, aos poucos, a singela capela com as suas vozes.

 

“É possível que conheçam a maioria das quadras que nós vamos aqui cantar, mas não estranhem se ouvirem uma ou outra palavra diferente do que estão habituados, porque, na verdade, cada localidade tinha a sua forma própria de cantar e por vezes há mudanças de palavras de sítio para sítio”, começa por explicar Pedro Mestre.

 

À medida que as cantigas avançam, as palmas que outrora apareciam timidamente, depressa começam a surgir com mais intensidade. Vêm agora acompanhadas de sorrisos que trazem recordações de outros tempos em que o frio da noite era o companheiro mais certo daqueles que saíam das suas casas e, de porta em porta, cantavam na véspera de Natal, Ano Novo e Reis.

 

Julieta Calisto, que assiste, com os olhos a brilhar, à atuação, conhece bem cada verso dos cânticos. Nascida e criada, como se orgulha de dizer, na pequena aldeia de Grandaços, esteve 18 anos no Grupo Coral As Camponeses de Castro Verde, onde passou, até há bem pouco tempo, muitas noites, de casa em casa, a cantar nesta época.

 

“Eu costumava ouvir as pessoas mais velhas dizerem e falarem que antes andavam de porta a porta pedindo e eu, quando cantava, era tal e qual como antigamente e corri o concelho de Ourique todo cantando estes cantares junto às câmaras e assim”, confessa sorridente ao “Diário do Alentejo” (“DA”).

 

Diz desconhecer esta nova forma de apresentar o cante ao Menino, às Janeiras e aos Reis, mas reconhece a importância de se manter “esta tradição” e de perpetuá-la. “Esta é uma forma deles conhecerem esta tradição. Como é que eles vão buscar isto se não verem e ouvirem? Não sabem, têm de ser puxados por nós mais velhos”, comenta, enquanto aponta para a sobrinha.

 

Depois de uma ligeira viagem até aos cantadores de Safara e Peroguarda, com um cantar lento e à capela, Pedro Mestre e José Diogo Bento cantam agora como em Barrancos, acompanhados por uma ronca e embebidos pela alegria característica das vilas raianas. Dali até aos cantares de Messejana e Castro Verde não tarda.

 

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A NECESSIDADE DE SE CANTAR PARA PEDIR

Cantar nesta quadra traz também um sentimento amargo. Aqueles que em tempos se juntavam, em grupos informais de amigos e vizinhos, e que aproveitavam estas ocasiões para percorrer as ruas “com a intenção específica” de recolher “linguiças, pães e queijos”, assim como “moedinhas”, não têm uma lembrança feliz da época.

 

José Colaço Guerreiro, escritor e autor do programa radiofónico “Património”, e Francisco Torrão, compositor e mestre de cante, referem ao “DA” que a tradição do cante ao Menino, às Janeiras e aos Reis surge como “cantares de índole religioso” que saíram das igrejas e que se enraizaram na população que, de porta em porta, tentava “amenizar um pouco a falta de bens essenciais”.

 

A relutância dos grupos corais, até meados dos anos 80, e que ainda hoje permanece junto de alguns membros, vem associado à recordação de um período de pobreza em que o cante era encarado como uma “salvação” para comer ou juntar algum dinheiro.

 

“Os grupos corais sempre tiveram alguma relutância em cantar estes cantares tradicionais, [porque] não era bem a sua praia e não era aquilo a que estavam habituados a cantar. Eles privilegiavam o cante e consideravam estes cantares tradicionais uma coisa menor que não era da sua responsabilidade e, por outro lado, [estas cantigas] estavam ligadas ao trauma da pobreza e as pessoas não queriam recordar. [O cante ao Menino, às Janeiras e aos Reis] era pedinchar e esse cunho de necessidade fazia com que houvesse alguma relutância em assumi-lo no presente”, refere José Colaço Guerreiro.

 

Ainda que nos tempos de hoje esta tradição seja encarada como “um espetáculo”, Pedro Mestre afirma que ainda existe esta memória coletiva muito presente e vincada na sociedade. “Cantei com pessoas em grupos que não gostavam do cantar das Janeiras e, sempre que se falava naquilo, emocionavam-se porque era associado à fome, porque muita gente fazia isto por necessidade. A minha avó dizia que as vizinhas da idade dela faziam aquilo por necessidade mesmo”, confessa.

 

José Diogo confirma. “Agora há pouco tempo, no último ensaio de um grupo aqui da região, tive lá dois que me disseram com as letras todas que não gostavam nada de cantar isto e que só cantavam porque o grupo assim o decidiu. E, quando assim é, torna-se mais difícil”, desabafa.

 

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A PARTICULARIDADE DESTE CANTE

O cante tradicional ao Menino, às Janeiras e aos Reis, além de se alterar de localidade para localidade, diverge ainda entre si. O primeiro, cantado a 24 de dezembro, estava ligado à Missa do Galo e assim, como o cante aos Reis, na noite de dia 5 de janeiro, “não dava espaço à imaginação”, ou seja, segundo José Colaço Guerreiro, estes “eram textos transmitidos oralmente, que chegaram até ao presente, e que não permitiam uma comunicação pessoal ou direta [entre os cantadores e] as pessoas que estavam em casa”. Por sua vez, o cante às Janeiras ou ao “Anno-Bom”, era cantado a 31 de dezembro, e servia para “exaltar a entrada do novo ano”, “dar o bom ano aos patrões” e ainda “pedir uma esmola”.

 

“[As Janeiras] eram cantigas cantadas, também de porta em porta, mas até eram chamadas de ‘chacotas’, [porque], muitas vezes, tinham um sentido pejorativo, pois, ou aproveitavam para elogiar e receber alguma coisa, ou se batiam à porta e ninguém atendia, ou demoravam a abrir, cantavam na mesma qualquer coisa, mas menos simpática”, explica.

 

Ainda assim, todos os cantadores, independentemente da noite em que se dirigiam até às casas, antes de cantar, perguntavam “quer que cante ou que reze?”, para se certificarem se havia ou não luto naquela família e, assim, demonstrar o seu respeito.

 

Também a própria forma de cantar estas cantigas tradicionais, diz José Diogo, é “muito exigente” e completamente diferente daquela a que os cantadores de grupos corais alentejanos estão acostumados. “Há vários motivos para os grupos não quererem cantar isto, ou pelo teor depreciativo, ou pelo cariz religioso que afasta os homens ou por ser um tipo de cantar tão exigente que é raro que, atualmente, alguém queira cantar este tipo de cante”, revela.

 

Pedro Mestre levanta ainda uma outra questão. “Eu agora vejo alguns grupos cantarem as Janeiras e aquilo não é nada. Não estou a ser crítico, estou a ser realista, porque estão a cantar o básico, e que se, por acaso, aprofundarem e forem às raízes das suas origens vão encontrar um cante antigo de Janeiras [das suas terras], porque houve em todo o lado. Portanto, corremos o risco de, hoje, ir a um encontro de Janeiras e uma série de reportório repetir-se”, conta.

 

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PERPETUAR UMA TRADIÇÃO COM NOVOS MOLDES

A noite confirma-se fria. A 25 quilómetros de Grandaços, na igreja de Panóias, cerca de duas dezenas de pessoas aguardam pelos cantadores. A mistura de gerações, caras novas que olham com curiosidade e aguardam ansiosas para saber o que acontecerá dali a instantes e outras, enrugadas da vida, que conhecem bem a simbologia que aqueles versos carregaram nos seus pais, avós e bisavós.

 

Num ambiente descontraído, talvez por um dos cantadores ser “moço da terra”, e em dois bancos altos, com os capotes negros a sobressaírem do altar caiado de branco, Pedro Mestre e José Diogo Bento voltam a percorrer cantares de Campo Maior, Messejana, Amoreiras-Gare, Castro Verde e Almodôvar, acompanhados à viola campaniça.

 

“O padre não tem tanta gente como nós”, graceja Pedro Mestre, ao reparar que a casa está composta.

 

Esta iniciativa do cante ao Menino, às Janeiras e aos Reis já percorreu cinco igrejas do concelho de Ourique e destaca-se pela sua particularidade em trazer até às populações esta tradição, assim como os diferentes estilos e instrumentos musicais alentejanos ao mesmo tempo que educa e incentiva a conhecer a diversidade que o cante e o seu repertório têm.

 

“Parecendo que não, mas de uma forma simples para nós, mantivemos uma tradição dos nossos antepassados, que o faziam por necessidade de ter um pão ou umas bolotas, na noite de Natal, das Janeiras e dos Reis”, refere Pedro Mestre numa das intervenções que faz com o público que os assiste.

 

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À semelhança de Julieta Calisto, também Mário Páscoa, que veio de uma aldeia próxima para ver o espetáculo, reconhece a necessidade de se continuar, mesmo que em moldes diferentes, esta tradição que correu lés a lés todas as terras alentejanas e de incentivar as novas gerações.

 

“Dou muito valor [ao cante de Natal] porque já o meu pai e bisavô o faziam e agora incentivo também o meu neto, que toca viola campaniça, para que ele também continue esta tradição ligada ao cante. Tenho feito questão de lhe oferecer algumas violas para contribuir também para que isto não se perca, porque, realmente, é uma coisa do Alentejo e será uma pena se, um dia, se perder”, conta.

 

Também Francisco Torrão sabe o enorme peso de preservar “esta tradição com as modas antigas” que, a seu ver, estão a “ficar para segundo plano”.

 

“Antigamente, este modo de cantar não era organizado institucionalmente, era da vontade popular dos bairros e ruas que faziam os seus grupos. E o que eu queria pedir, aos meus colegas dos outros grupos corais, era que mantivessem esta tradição com as modas antigas, [bem como, reconhecer] o papel fundamental dos municípios por haver concertos por esse Alentejo fora em igrejas com o cante ao Menino, às Janeiras e aos Reis. Porque eu não sou conservador, sou apenas um defensor da tradição”, realça.

 

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À medida que a noite avança, influenciados, talvez, pelas vozes que escutam de dentro da igreja, continuam a chegar ouvintes. Tímidos, por o espetáculo já estar a terminar, permanecem ao fundo da sala, junto à árvore de Natal iluminada. Tiveram sorte de ainda conseguirem ver o pequeno João, que entretanto se juntou a Pedro Mestre e José Diogo para cantar uma das quadras que também cantou num programa de televisão recentemente.

 

As palmas ecoam ainda com mais força no final desta cantiga. Em palco, três outras gerações, que não viveram, mas aprenderam a sentir o que foi vivido naquela época. A imagem de despedida, da última atuação do dia, é também de esperança. Esperança daqueles que olham, sentados nos bancos de madeira da igreja e que carregam na pele e na memória os tempos sofridos do cantar ao Menino, às Janeiras e aos Reis, de que a tradição está assegurada. Pelo menos por mais uns anos.

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