Diário do Alentejo

As aldeias que se querem seguras

08 de julho 2022 - 10:30
No distrito de Beja há oito aldeias que fazem parte do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”
Fotos | Câmara Municipal de OdemiraFotos | Câmara Municipal de Odemira

Dos 2232 aglomerados envolvidos no programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”, implementado pelo Ministério da Administração Interna, coordenado pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (Anepc) e promovido pelas autarquias, após os incêndios que assolaram o País em 2017, oito encontram-se no distrito de Beja, nos concelhos de Odemira e Ourique. O “Diário do Alentejo” foi conhecer duas delas.

 

Texto Marco Monteiro Cândido

 

Em volta, apenas serrania e arvoredo. A estrada que conduz até Vale dos Alhos, mesmo no limite mais a sul do concelho de Odemira, corre lado a lado com uma ribeira onde a água já terá corrido mais. A estrada, tal como a ribeira, corre ao longo do vale que terá dado o nome à povoação. Um vale longilíneo, como todos os vales, aquietado entre serros coroados por árvores, eucaliptos na sua maioria. Como a ribeira até certo ponto, também a aldeia se dispõe ao longo da estrada alcatroada que terminará uns quilómetros mais à frente. O silêncio reina. Tirando um carro que passa de tempos a tempos, veem-se algumas pessoas a percorrer a estrada a pé, exclusivamente de origem asiática, confirmando o que é anunciado na sinalização à entrada da aldeia: atenção, peões nas bermas! Uns metros mais à frente, surge nova placa a indicar que aquela é uma aldeia segura, com a planta do aglomerado e do seu edificado. Com a indicação do refúgio coletivo, do percurso de evacuação e dos contactos necessários em caso de incêndio.

 

Cristina Chichorro, de 42 anos, é uma de três portugueses residentes na aldeia, entre os 31 habitantes de Vale dos Alhos. Desde o mês passado que é oficial de segurança da aldeia que recebeu, dia 30 junho, um simulacro que confirmou o aglomerado como “Aldeia Segura” e membro efetivo da rede que está presente no País. Sem ligação alguma à terra onde vive, desde 2019, acabou por se instalar em Vale dos Alhos para criar um alojamento local. Com o seu companheiro, alemão, é umas das poucas residentes, a tempo inteiro, na aldeia. E essa foi uma das razões que levaram ao convite para o cargo de oficial de segurança, por parte do presidente da junta de freguesia de São Teotónio, Dário Guerreiro, no sentido de ser “a pessoa responsável, no caso de haver um incêndio em Vale dos Alhos, de saber lidar com a situação, tocar o alarme, reunir as pessoas. Não podia dizer que não”. Das pessoas que habitam, efetivamente, em Vale dos Alhos, Cristina é das poucas. De nacionalidade portuguesa, ainda menos, já que a aldeia tem 25 residentes asiáticos, três de outras nacionalidades e três portugueses. “Já outras pessoas tinham sido contactadas, mas, de facto, ninguém vive aqui. Têm aqui negócios, turismos, mas não vivem aqui. E era preciso alguém que estivesse aqui e fosse um residente aqui”.

 

Cristina é umas dos 2087 oficiais de segurança do País, um “elemento “chave” do aglomerado, desejavelmente nele residente e que voluntariamente funciona como agente facilitador entre o município/freguesia e a restante população da comunidade, operacionalizando as diferentes medidas e disseminando informação”, segundo as diretrizes do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”. Criado em 2017, após os incêndios de Pedrógão Grande (17 de junho, com 66 vítimas mortais) e da zona centro do País (em vários concelhos, totalizando 51 mortes), visa, sobretudo, “uma reforma sistémica na prevenção e combate aos incêndios florestais, estendendo-se a outras áreas da proteção e socorro”, sensibilizando as pessoas, protegendo-as e, consequentemente, aos aglomerados. Na preparação de Vale dos Alhos para integrar o programa, Cristina refere que, entre as inúmeras reuniões com o Serviço de Proteção Civil da Câmara Municipal de Odemira (CMO); a sensibilização dos moradores para a importância da limpeza de pastos e mato; e a própria limpeza por parte da autarquia, foram feitos dois exercícios: um com menos pessoas, para se interiorizarem os procedimentos, e o simulacro final, do passado dia 30, já a valer, com as autoridades de proteção civil, de segurança e socorro presentes.

 

ALDEIAS SEGURAS SÃO SEMPRE PONTOS CRÍTICOS 

No concelho de Odemira, para além de Vale dos Alhos, existem outras quatro “aldeias seguras”: Corte Malhão, Lameiros, Vale Ferro e Moitinhas, com esta última a ter um incêndio em outubro do ano passado e onde os ensinamentos do programa deram frutos. “Infelizmente, em Odemira, temos esse exemplo com o incêndio que tivemos nas Moitinhas, que já era uma aldeia segura, em que o nosso oficial de segurança já atuou, já houve evacuação, as pessoas já foram para o local seguro e isso ajudou muito todos os agentes de proteção civil que estavam no local”. Quem o refere é a vereadora da CMO com o pelouro da proteção civil (em substituição do presidente), Raquel Silva.

 

A escolha das aldeias a integrar o programa tem tido por base a Carta de Perigosidade de Incêndios Rurais (que neste momento está suspensa, fruto do Orçamento do Estado, para revisão). No entanto, consultando o documento que tem estado em vigor até há pouco tempo, quase toda a faixa mais a sul do distrito, na fronteira com o Algarve, está assinalada a vermelho, indicativa de uma classe de perigosidade muito alta. Ou seja, as “aldeias seguras”, são aglomerados que, seja pelas áreas florestais e de matos, pela configuração dos terrenos ou da sua localização e acessibilidade, têm um potencial de risco elevado face aos incêndios florestais. E, no concelho de Odemira, a escolha das aldeias não é exceção. “São aldeias que estão isoladas. Que, no fundo, foram identificadas com alguns pontos críticos, tendo em conta o edificado urbano-florestal e a tipologia de pessoas que vivem nessa zona”. Segundo Raquel Silva, no entanto, há outras aldeias no concelho, “que é muito grande, muito díspar”, que suscitam preocupação, fruto do sistema “agro-silvo-pastoril muito grande e de uma zona de floresta também intensa”. “Temos um histórico de incêndios que nos preocupa e, portanto, a intenção deste programa é, no fundo, apostarmos muito na prevenção, na sensibilização, para evitar, depois, a ação futura”.

 

Voltando a Cristina e a Vale dos Alhos, esta não está sozinha na missão de oficial de segurança. O programa prevê a existência, também, de um substituto. Neste caso, Shuban Jonjua, indiano, trabalhador agrícola, cuja escolha surge num contexto de 25 residentes asiáticos (maioritariamente indianos) entre 31, como elemento facilitador e de mediação com esta comunidade. “Em Vale dos Alhos, tivemos uma vantagem grande, já que conseguimos que o substituto do oficial de segurança seja uma pessoa indiana. Temos uma grande população migrante nesta aldeia e o facto de termos conseguido um oficial desta nacionalidade ajuda-nos na questão da barreira da língua, na questão de ganhar a confiança das pessoas para a importância deste programa”. A vereadora da CMO, sublinha que, o facto dos oficiais de segurança serem de nacionalidades diferentes, “acabam por se complementar e conseguir, no fundo, chegar a todos os que vivem naquela zona”.

 

Com o simulacro de 30 de junho, Cristina e Shuban puderam colocar em prática os procedimentos a seguir em caso de incêndio. Acionar o alarme (um megafone), dirigir as pessoas para o refúgio coletivo, verificar se estaria toda a gente, num permanente contacto com as equipas de auxílio, foram passos de um processo que correu bem, segundo a oficial de segurança, munida com o seu kit de emergência, fornecido pela autarquia: uma mochila com material de primeiros socorros, lanterna, rádio, megafone, máscaras, para além de um caderno com todas as características do aglomerado.

 

 

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O PERIGO SEMPRE À ESPREITA 

A estrada alcatroada serpenteia ao longo dos poucos mais de quatro quilómetros e meio, por entre serros e montes. A paisagem, seca e árida, é abundante em estevas e eucaliptos. Oliveiras e sobreiros também, mas menos. Na fronteira entre o Baixo Alentejo e o Algarve, esta zona tem já a influência das serranias algarvias. Ao fim dos quatro quilómetros e meio, o alcatrão termina. Nesta linha escaldante em dias de verão, um pequeno troço de curvas e contracurvas, situam-se as três aldeias seguras do concelho de Ourique, na freguesia de Santana da Serra. Fitos, Monte Branco e Monte da Ribeira. Aldeias pequenas, atravessadas pela língua de asfalto. O fim da estrada é no Monte da Ribeira. A mesma estrada que conduz à aldeia é a mesma que serve para a deixar. A entrada é a saída. Do Monte da Ribeira para a frente, só terra batida, serpenteando já bem junto à fronteira com o Algarve. No fim da estrada, no fim do alcatrão, a Taberna do Ti João é quase como um oásis em plena terra serrana. É aqui, no café da aldeia, que os habitantes locais, mas também os dos montes espalhados pelas redondezas, se reúnem. E é aqui, também, que é o ponto de encontro designado, do Monte da Ribeira, em caso de incêndio.

 

Jorge Silva, 62 anos, é o oficial de segurança e dono do café, heranças que lhe ficaram do pai, antigo dono do estabelecimento e o primeiro oficial na aldeia. “Isto implica conhecer as pessoas. Saber quem está, quem não está; quem vive cá, quem não vive. E o sítio onde moram”. As aldeias seguras pressupõem dois tipos de locais para onde as pessoas se devem dirigir em caso de incêndio: o abrigo ou o refúgio coletivo. Se o primeiro diz respeito a um espaço fechado, o segundo refere-se a um local aberto. Com uma população de 16 pessoas no perímetro da aldeia, o abrigo do Monte da Ribeira é no café de Jorge, que, em caso de incêndio, tem que saber “quem é que falta, quem é que não falta”. E saber dizer qual a pessoa que não está e onde é que mora.

 

Mário Cristina, de 75 anos, é o parceiro de Jorge neste projeto. “O nosso papel é, se houver algum incêndio, tentarmos reunir o pessoal todo para aqui, para um lugar mais seguro. Temos que preparar este aparelho (o megafone), fazê-lo soar, chamar o pessoal para aqui e participar, antecipadamente, às autoridades de segurança para nos acudirem. No caso de haver um incêndio, participamos às autoridades. No caso de elas nos contactarem, temos que participar às pessoas”. Segundo Mário, a população da aldeia está ciente do que fazer e da função de cada um, no entanto, apesar de já não haver incêndios há muitos anos na zona da aldeia, o receio anda sempre presente. “Isto está muito perigoso, muito seco. Temos que andar sempre com cuidado”.

 

Outra das preocupações é a fraca cobertura de rede de telemóvel na aldeia, o que pode dificultar as comunicações. Segundo Mário, apenas há rede em certos pontos para onde vão com o telemóvel para comunicar. “Há essa dificuldade. Não é em qualquer sítio que conseguimos falar. Estas pessoas aqui, comunicamos diretamente. Com as pessoas dos montes, comunica-se por telefone. Se pudermos lá ir, vamos. Se vemos que não podemos, não vamos”. Em Odemira, não propriamente em Vale dos Alhos, a questão da qualidade das comunicações também preocupa. No início de junho, numa reunião entre a CMO e a Autoridade Nacional de Comunicação (Anacom), debateu-se sobre a qualidade de serviço das redes móveis, com a existência de muitas zonas críticas no concelho. Algo que pode dificultar a ação em cenário de incêndio. “Tivemos, há relativamente pouco tempo, a apresentação do estudo da Anacom e onde mostraram que este município é daqueles que mais sofre com pontos negros no país”. No entanto, para a vereadora Raquel Silva, o facto de Odemira estar entre os piores significa que serão dos primeiros onde haverá investimento nessa área. “Queremos acreditar que o estudo, aliado aos programas “Aldeias Seguras” e “Pessoas Seguras”, em que mostramos os aglomerados que temos dispersos, as dificuldades que têm e os riscos que correm, que isso possa, cada vez mais, surtir algum efeito no investimento na rede de telecomunicações na nossa região”.

 

A PANDEMIA E O ACOMPANHAMENTO DO PROGRAMA

 A nível nacional, os programas conheceram algum esmorecer com o surgimento da pandemia, em 2020. Se em 2018 havia 1793 aldeias e 1963 em 2019, os dois anos seguintes foram de abrandamento, até porque os serviços municipais de proteção civil, um pouco por todo o País, estiveram focados na resposta à covid-19. No entanto, atualmente com 2232 aglomerados, a dinâmica parece ter voltado ao ímpeto inicial, apesar dos muitos pontos a aperfeiçoar em todo o processo. Segundo o Relatório de Atividades de 2021 do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Florestais, da autoria da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, para uma maior dinâmica destes programas, é desejável “uma mobilização das partes interessadas, a revisão do modelo de financiamento e a articulação com o programa de “Condomínio de Aldeia” visando práticas mais sustentáveis de gestão da vegetação em torno dos aglomerados”. Promovidos e implementados no terreno pelas autarquias, as diferenças de acompanhamento dos oficiais de segurança e das populações, bem como toda a sinalética e materiais dos kits de segurança, poderão diferir no território. Já no final de 2020, o estudo do Observatório Técnico Independente alertava para a “dispersão de esforços, com um número muito elevado de aldeias e de freguesias – algumas de baixa prioridade – e a uma eventual perda de eficácia do programa”. O documento acrescentava ainda, entre outros aspetos, que deveriam ser revistos os critérios usados para definir os níveis de prioridade, bem como apostar, a par da figura do oficial de segurança e da realização de simulacros, na mudança de hábitos das populações, com “ações de prevenção e de melhoria de comportamento em caso de incêndio”.

 

Em Vale dos Alhos, os dois cães de Cristina juntam-se a ela. Fazem-lhe companhia, em busca de festas e brincadeira. O fim de tarde vai chegando e, com ele, os trabalhadores de origem asiática, que caminham junto à estrada, de regresso às suas casas. Ouve-se o chilrear dos pássaros e a folhagem das árvores resmalha com a brisa atlântica. O céu mantém-se cinzento, nublado. O sol e o calor, por agora, não entram aqui. O ar fresco corre, com pouca intensidade, pelo vale. Que seja um prenúncio do tempo que virá!

 

 

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