Diário do Alentejo

Alcácer vai testar rendimento básico incondicional

02 de novembro 2021 - 08:05

Um grupo de habitantes de Alcácer do Sal irá receber durante dois anos 500 euros mensais, sem contrapartidas e independentemente da sua condição social. Trata-se de uma experiência piloto para testar o impacto do Rendimento Básico Incondicional (RBI) no emprego e no bem-estar da comunidade abrangida.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

O trabalho de campo decorreu entre maio e junho deste ano e foi coordenado por Catarina Neves, uma investigadora da Universidade do Minho que neste momento está a trabalhar no seu doutoramento com uma tese sobre a justificação filosófica para o RBI. O grupo que beneficiará deste programa ainda não está escolhido mas incluirá diferentes extratos da população quer ao nível etário, quer de género. A ideia partiu de um natural da terra que, depois de ter trabalhado vários anos no estrangeiro, regressou a casa para fazer “algo diferente” pelas pessoas do seu concelho.

 

 

Rui Ribeiro é um dos dois gestores do projeto que pretende testar a introdução do RBI em Alcácer do Sal, terra de onde é originário e onde estudou Artes e Ofícios na escola secundária. Posteriormente licenciou-se em Design Multimédia na Universidade da Beira Interior.

 

Qual a razão do seu interesse pelo Rendimento Básico Incondicional (RBI) e que percurso fez até aqui?

Fiz carreira numa agência de publicidade digital em Lisboa e mais tarde imigrei para a Holanda para trabalhar na organização não-governamental (ONG) RNW media como coordenador de ‘design’ onde ajudei a executar, desde a sua conceção, projetos com impacto social e humanitário em países como o Iémen, China, Burundi e Índia. Após alguns anos fui contactado para me juntar à equipa de ‘design’ e ajudar no processo de ‘rebranding’ e ‘spin-off’ da Philips Lighting e para liderar a comunicação da Phone lips Hue. Entretanto, retornei a Portugal para viver em Alcácer do Sal, onde trabalho como consultor criativo e de ‘design’. O meu interesse pelo RBI começou ao perceber duas coisas: que a meritocracia é uma falácia e que o RBI é uma ferramenta económica mais justa se usada como complemento a políticas sociais. Este ‘insight’ veio após várias conversas com a minha parceira, que é especialista em políticas sociais e economia social. Devo confessar que principalmente dois livros foram muito inspiradores, o “Give People Money”, de Annie Lowrey e o “Tyranny of Merit”, de Michael Sandel. Em termos de motivação vi Alcácer do Sal - ao longo dos anos que vivi aqui, mas que trabalhei em Lisboa, e principalmente após sete anos emigrado - a degradar-se socialmente, e acho que é tempo de fazermos algo de diferente principalmente para dar esperança às pessoas. Não vejo o RBI como uma bala de prata mas como uma ferramenta que promove justiça social.

 

Para além de ser a sua terra de origem, existe mais algum fator que torne Alcácer do Sal ideal para fazer este tipo de experiência?

Sim, essa foi uma discussão que tivemos com especialistas no tema e achamos que é um fator inovador por ser feito num concelho vasto mas com pouca densidade populacional, o que nos fez pensar que para um piloto de RBI reúne condições muito interessantes para medir um impacto na economia local mantendo uma amostra de entre 75 a 200 pessoas residentes no concelho. E o facto de ser um concelho pobre também ajuda a que o impacto seja refletido na vida das pessoas.

 

Como é que é selecionado o grupo?

Ainda não chegamos a uma conclusão definitiva sobre o desenho do piloto. O nosso desejo seria testar também a universalidade do RBI. Por exemplo, dar o mesmo valor por indivíduo independentemente de ser solteiro, casado, com dependentes ou não, pertencente à classe média ou alta. Percebendo o panorama atual de financiamento dado pelo Estado ou pela Comunidade Europeia, os objetivos são muito claros de criar pilotos ou experiências social que apenas impacte os “miseráveis”. E digo de propósito “miseráveis” pois os valores que falamos ou as intervenções feitas permitem tirar pessoas da miséria para o estado social de pobres ou muito pobres. É uma crítica que deixo, e penso que muitos a partilham. O nosso objetivo seria selecionar um bairro ou uma aldeia para o projeto-piloto ou selecionar um grupo de pessoas muito pobres.

 

O financiamento já está garantido. O que nos pode dizer em relação a isso e qual o papel da Câmara de Alcácer do Sal e de outras instituições regionais e do Governo?

Não e está longe de o conseguir pois neste momento não temos ferramentas ao nosso dispor, mas em princípio, no próximo ano, temos novos modelos de financiamento que podemos explorar. Tenho andado em diálogo com uma consultora para o garantir. O município e a associação de municípios já foram contactados em vários momentos Pretendemos que a autarquia assine um manifesto de apoio ao projeto, como primeiro passo afirmativo que esse é o desejo político da câmara de Alcácer do Sal. Ainda espero por uma resposta sobre o tema.

 

Em notícias de casos semelhantes, por exemplo na Finlândia, dá a ideia que a experiência não atingiu os resultados esperados…

Posso dizer muita coisa, sobre isso, até começando por perceber que a experiência da Finlândia foi desenhada de uma forma a libertar os desempregados do ‘stress’ de procurar emprego e os objetivos foram “medir” se essas pessoas conseguiam entrar no mercado de trabalho de uma forma mais rápida. Ora, as pessoas desempregadas não têm impacto direto nas oportunidades de emprego, mas se olharmos para os objetivos sociais, o nível de ‘stress’ reduziu. Recomendava que analisassem os resultados feitos na Coreia do Sul, Namíbia, Quénia ou mesmo na Catalunha; ou nos Países Baixos.

 

O QUE É O RBI?

O Rendimento Básico Incondicional é uma proposta política que visa dar uma prestação monetária, a todos os cidadãos, de forma incondicional, ou seja, livre de obrigações. Apesar de ser uma proposta pouco conhecida, pensadores como Thomas More (no século XVI), ou Thomas Paine (no século XIX) já a tinham sugerido. São conhecidas várias experiências como, por exemplo, nos anos 50 e 60, nos EUA e Canadá. E outras, mais recentes, na Finlândia, Países Baixos, Barcelona e Alemanha. Foram ainda desenvolvidos projetos-piloto na Namíbia, Quénia e Índia. Atualmente, nos EUA, decorre a iniciativa “Mayors for Guaranteed Income”, que conta já com dezenas de experiências de rendimento básico. A primeira delas ocorreu em Stockton, California – “The Seed Project” - cujos resultados foram publicados no verão de 2021. A pandemia de covid-19 e as desigualdades que ficaram à vista vieram recolocar o tema na agenda internacional.

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