Diário do Alentejo

Olival e pecuária ameaçam conservação do solo

30 de junho 2021 - 14:25

A responsável pelo Centro Experimental de Erosão de Solos de Vale Formoso, organismo público instalado numa herdade do concelho de Mértola, considera que o olival intensivo e superintensivo e a criação de gado bovino são, de momento, as grandes ameaças à conservação do solo no Baixo Alentejo.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

A expansão dos “olivais intensivos e superintensivos” na região do Baixo Alentejo apresenta-se, de momento, como a grande ameaça à conservação do solo. Por um lado, porque “é sempre muito mau quando um país ou uma região aposta em monoculturas, e nós já vimos isso no passado [com os cereais]”, afirma, ao “Diário do Alentejo”, Maria José Roxo, responsável pelo Centro Experimental de Erosão de Solos de Vale Formoso, organismo público afeto à Direção Regional de Agricultura do Alentejo instalado há seis décadas numa herdade do concelho de Mértola.

 

Por outro lado, “pela forma como são feitas as preparações do terreno para a instalação dos olivais intensivos”, continua a professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “É arrasar, é nivelar, é destruir linhas de água naturais e passar a ter linhas de águas artificiais, é ter solos que vão ficar contaminados com pesticidas, herbicidas. E depois preocupa-nos a contaminação dos aquíferos, porque esses materiais entram para as águas subterrâneas”, especifica.

 

No que respeita à água, refere, “depende de como é que estão a regar”. Caso estejam a regar com águas superficiais, “estão ligadas à rede de expansão da barragem do Alqueva; se estão a regar com furos e com águas subterrâneas estamos a gastar mananciais que temos e que são difíceis de recuperar em função das mudanças que estamos a assistir no clima, e isso é preocupante”.

 

A especialista em desertificação reforça que “é preocupante termos uma paisagem que é apenas uma monocultura, o que não é bom para a biodiversidade”. Se houver uma praga “fica tudo aniquilado”. E questiona: “Quando estas monoculturas intensivas e superintensivas depois terminam, como é que fica a paisagem, o que é que se põe a seguir?”. Por isso considera “lastimável” que se permitam “hectares e hectares sucessivos, sem interrupção, do mesmo tipo de cultura”.

 

Não querendo ser pessimista, mas por aquilo que observa, Maria José Roxo “gostaria que a expansão dos olivais intensivos e superintensivos terminasse e que houvesse uma política concreta de gestão do território do ponto de vista agrícola, e isso não tem transparecido”.

 

Já no concelho de Mértola, onde desenvolve trabalhos de investigação desde finais da década de 80 do século passado, pelo que lhe é dado observar, é “seriamente” preocupante o “impacto” da criação de gado bovino. Embora não tenha dados atualizados, diz que é possível “observar na paisagem” um aumento desse tipo de criação, “verdadeiramente um problema do ponto de vista ambiental e de degradação de solos”.

 

Defende, por isso, que, onde não há solo para a agricultura, “deve apostar-se em pastagens naturais para ovelhas e cabras e não vacas”. Porque “os bovinos têm uma exigência muito maior em termos de alimentação, porque não temos pastagens de qualidade naqueles solos que permitam a exigência deste gado e porque tivemos o azar de ter em 2006, e nos anos seguintes, períodos de seca que verdadeiramente debilitaram todos os ecossistemas naquela região”, justifica.

 

Há registo, no entanto, “de muitas áreas [no concelho] que estão a dar indícios de recuperação”, o que é “muito reconfortante também”. Situação essa que se deve ao abandono dos solos, “porque a vegetação natural tende a recuperar o terreno”. A investigadora espera é que os agricultores não resolvam colocar novamente “aqueles terrenos em produção, não sei muito bem do quê”, “lavrando outra vez a terra e destruindo a vegetação”, se bem que é algo impossível de controlar, diz.

 

“CONHECIMENTO DO TERRENO É VERDADEIRAMENTE IMPORTANTE”

 

Segundo Maria José Roxo, o “objetivo crucial” do centro experimental, “o mais antigo da Europa em funcionamento” na área do estudo de erosão de solos, foi sempre trabalhar “esta componente da desertificação, que é a questão da erosão de solos, e que tem uma ligação muito grande às práticas agrícolas, aos tipos de agricultura, de cultura”. E, consequentemente, que o trabalho desenvolvido no centro pudesse ser divulgado.

 

Nesse sentido, relembra “os vários ‘workshops’, reuniões, dias abertos com os agricultores” realizados com vista a demonstrar os resultados que iam obtendo nas parcelas experimentais. E a recetividade “foi muito boa”. “Se eu mudar uma forma de trabalhar ou de conservar o solo, ou se um agricultor, em vez de ter 100 ovelhas, passar a ter 50, tudo isso são pequenas conquistas”, diz, admitindo que o centro “poderá fazer muito mais no futuro” em termos de transmissão de boas práticas de conservação aos agricultores, até porque, nos últimos anos, devido ao desgaste do equipamento, foi necessário seguir outra linha de investigação (ver segundo texto).

 

A especialista realça que “as culturas e usos do solo que implicam a mobilização periódica do solo, como o cultivo de cereais, favorecem a erosão dos solos pela ação da água da chuva, a que designamos erosão hídrica”, porque “se abrem os alqueives e se fazem as sementeiras na estação do ano em que se iniciam as chuvas, no outono, e muitas vezes estas chuvadas intensas, desagregação das partículas do solo e a escorrência superficial transporta uma grande quantidade de sedimentos, como argilas, limos, matéria orgânica, para os cursos de água, empobrecendo o solo e destruindo a sua capacidade produtiva”.

 

No caso da criação de gado assiste-se “ao processo de compactação do solo e a sua destruição”. O solo “fica sem capacidade de infiltração, logo a água da chuva não se infiltra e escoa-se em superfície, provocando uma enorme lavagem superficial e a degradação do solo”. 

 

Maria José Roxo destaca ainda como negativo “a sucessiva destruição dos matos”. “Os agricultores gostam de ver a terra limpa, mas é um grande erro. Os matos protegem o solo da erosão hídrica, permitem haver biodiversidade e têm valor económico (mel, caça, entre outros usos)”.

 

A investigadora garante, contudo, que não culpa os agricultores “por aquilo que se passa no território”. Na sua opinião, os decisores é que “deveriam ouvir mais as pessoas que fazem estudos” e tomar mais atenção “às características geográficas dos territórios”, pois “uma boa política pode ser um desastre total no Baixo Alentejo e um sucesso total na Beira, porque as condições geográficas são diferentes”.

 

A aprovação de projetos do ponto de vista agrícola deveria ter sempre, reforça, “uma rigorosa avaliação das componentes geográficas do território – relevo, solo, clima –, para se perceber até que ponto é que o projeto está coadunante com as condições ou não”. E adianta: “Os técnicos é que deviam dizer, por exemplo, não vai fazer florestação com pinheiro manso, vai antes tentar fazer um projeto com azinheiras e com sobreiros. Muitas vezes bastava um conselho. É nisso que falha”.

 

E falha porque “nem todas as pessoas têm facilidade em comunicar ciência” e porque “não há, e deveria haver, canais muito mais fáceis e frequentes de comunicação entre quem estuda estes assuntos e, por exemplo, os técnicos que andam no terreno, se é que andam no terreno”, diz. Maria José Roxo reconhece que “os técnicos do Ministério da Agricultura muitas vezes também estão cheios de projetos e não têm possibilidade de ir ao campo”, mas considera que “o conhecimento do terreno, ver a realidade, é verdadeiramente importante”.

 

LAVRAR SEGUNDO AS CURVAS DE NÍVEL E NÃO DESTRUIR RESTOLHO

 

Ocupando uma área de cerca de um hectare na herdade de Vale Formoso, e integrando um laboratório e 18 parcelas experimentais, o centro experimental tem como objetivos “estudar o comportamento dos solos em diversas condições de declive e sujeitos a diversos tipos de culturas e rotações; analisar da natureza, intensidade e duração das chuvadas; determinar a ação que as várias culturas têm na conservação do solo que ocupam; avaliação dos efeitos das usuais mobilizações do solo no processo de erosão; deteção dos pontos defeituosos do sistema de exploração; e aplicação e observação dos efeitos de práticas conducentes à defesa do solo”.

 

Dos estudos experimentais realizados ao longo dos anos, Maria José Roxo destaca como principais conclusões o facto de “a medida mais concreta, eficaz, de conservação de solo, naquela região do Baixo Alentejo, e naquele tipo de solos, é lavrar segundo as curvas de nível, para quem quer continuar a fazer cereais”, o que permite reter a água; que não se deve queimar nem destruir o restolho, mas sim “integrá-lo no solo”; e que se deve utilizar leguminosas, como a tremocilha, para sideração, “o que também deu imensos bons resultados em termos de conteúdo de matéria orgânica, de minimização da erosão”. Outra conclusão importante é deixar o solo coberto “com qualquer cobertura vegetal a maior quantidade de tempo possível, não andar sempre a lavar, não andar sempre a mobilizar a terra”.

 

Tornar o Centro Experimental de Erosão de Solos numa “referência”

 

Transformar o Centro Experimental de Erosão de Vale Formoso “num centro de referência para estudos de erosão no Baixo Alentejo”, e a herdade Vale Formoso “num polo de investigação e de difusão de boas práticas agrícolas para aquela região”, é o grande sonho de Maria José Roxo. Aliás, a investigadora lembra que já tinha preparado um projeto nesse sentido, mas que acabou por “não ter o apoio das entidades oficiais que o poderiam ter financiado”. A responsável considera que é “fácil retomar o projeto”, basta para isso que haja “vontade do ponto de vista institucional, reunir as pessoas que verdadeiramente podem ajudar a tornar o centro de erosão num centro de referência”.

 

“Esta é uma das coisas pela qual sempre lutei e continuo a acreditar que pode ser [concretizado]. Colocar o centro a funcionar como deve ser, que possa ser útil à sociedade, aos jovens investigadores, àqueles que gostam de fazer verdadeiramente investigação”, diz, frisando que o centro “é uma pérola do ponto de vista científico”.

 

O centro experimental encontra-se atualmente “totalmente automatizado”, fruto de uma reabilitação levada a cabo há cerca de cinco anos com o apoio financeiro do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa e necessária devido ao desgaste dos equipamentos (infraestruturas em betão e metal). Anualmente é visitado por estudantes de vários graus de ensino, nacionais e internacionais, e também por professores e investigadores.

 

Em termos de projetos em curso, Maria José Roxo está a desenvolver, com os seus alunos de mestrado da Universidade Nova, um trabalho de investigação sobre o sequestro de carbono no solo, “uma forma de mitigação das mudanças climáticas”, uma temática “que nos preocupa bastante”. E na área da herdade de Vale Formoso, salienta, o que se pode demonstrar no âmbito das mudanças climáticas é que “chove menos, no total anual, as chuvas são mais concentradas no tempo e existe menos precipitação na primavera e no outono”. O centro tem ainda “em mãos” um outro projeto sobre desertificação, o Desert-Adapt, em parceria com a Câmara Municipal de Mértola.

 

A partir de setembro deverá ser implementado um novo programa de experimentação, muito provavelmente ligado à questão “da adaptação das culturas às mudanças climáticas”. “Que tipo de culturas é que vou por nas parcelas experimentais para percebermos o que é que se passa? Que culturas é que me podem regenerar solo mais rapidamente e tornar o solo mais produtivo? Seria muito interessante pensar em função da própria realidade envolvente”, explica a responsável.

 

“São novos desafios, são as mudanças climáticas, a necessidade de conservar solo e água, de ter uma gestão mais equilibrado do uso de solo consoante as especificidades dos territórios, e vamos fazer investigação e vamos divulgar investigação”, adianta. Seria, no entanto, fundamental, que as pessoas percebessem “a importância do trabalho científico e a necessidade que estes estudos experimentais têm que ter em termos de apoio dos ministérios. Não é só os trabalhos que possamos fazer, mas é a importância de ter conhecimento da realidade”, conclui.

 

DEGRADAÇÃO DOS SOLOS DEVIDO AOS CEREAIS NA ORIGEM DO CENTRO

 

O Centro Experimental de Erosão de Solos de Vale Formoso foi instalado na herdade de Vale Formoso, pertencente ao Estado, no início da década de 60 do século passado, por iniciativa de Ernesto Baptista d’Araújo e com financiamento do II Plano de Fomento. Maria José Roxo lembra que o centro visava “o estudo e quantificação das perdas de solo agrícola por erosão hídrica e o desenvolvimento e implementação de medidas e práticas de conservação de solo”. Segundo a investigadora, “era já então conhecido o elevado grau de degradação a que os solos da serra de Serpa e Mértola tinham chegado, devido à contínua e extensiva produção de cereais de inverno, com total predominância do trigo”. A herdade de Vale Formoso, localizada em plena serra de Mértola, teve inicialmente a designação de Campo Experimental de Vale Formoso, inaugurado em fevereiro de 1930.

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