Diário do Alentejo

“A originalidade reside na forma como o presépio cruza tradição e contemporaneidade, fé e território”

23 de dezembro 2025 - 08:00
Fotos | DR

Texto | Luís Miguel Ricardo

 

Tem 60 anos e é natural e residente em Beja. É licenciada em Educação de Infância e Serviço Social, pós-graduada em Ensino Especial, mestre em Sociologia da Família e da População e doutorada em Sociologia da Vida Quotidiana e da Família.   Ao longo do seu trajeto profissional, foi educadora de infância, técnica de intervenção precoce, coordenadora do ensino recorrente, professora do ensino superior, professora de dança e iniciação ao movimento. Atualmente é docente de educação especial no Agrupamento de Escolas n.º 2 de Beja.Para além do vasto percurso académico e profissional, tem dedicado parte significativa da sua vida ao universo das artes. Dança, artes plásticas e literatura infantil são as suas “praias” nas lides artísticas. Já organizou diversos espetáculos, quer a solo, quer em parceria com outros bailarinos, já expôs as suas criações um pouco por todo o lado, já publicou livros, e em todas as valências viu o seu trabalho reconhecido pela crítica, destacando-se: em 1998, a apresentação de uma coreografia no pavilhão de Portugal da Expo98; em 2008 e 2011, dois prémios na categoria de trapologia, referente às obras nesta vertente, com destaque para a sua vasta coleção de presépios, expostos de norte a sul; em 2009, uma distinção para o seu trabalho de escultura em massas polímeras; em 2011, o primeiro lugar no segundo concurso de literatura infantil da revista “Coisas de Criança”, editora Tuttirév, com a história a “A Girafa Maria”, que viria a ser lançado em dezembro do mesmo ano, na Feira Internacional de Lisboa (FIL); em 2012, o lançamento do segundo livro, Natal também é fado, com ilustrações de José Francisco, pela editora Alfarroba; em 2014, a publicação do terceiro livro A Princesa Magalona, novamente com ilustrações de José Francisco e com edição da editora Alfarroba, e cujos direitos de autor foram cedidos ao Centro de Acolhimento Temporário A Buganvília.Em setembro de 2025 apresentou o seu novo livro destinado a crianças, Chaparim quer comer a lua, uma narrativa para encantar crianças e adultos. É também um convite para quem ainda não conhece esta região única: venha descobrir Beja, o Alentejo e todos os seus encantos, onde sonhos e realidade se encontram!Para além desta vasta panóplia de valências artísticas, no ano de 2018 abraçou um projeto, em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Beja, que consiste na conceção de presépios com autonomia criativa. Um trabalho com continuidade, um trabalho pensado para cinco fases, um trabalho que encontrou no ano de 2025 a sua etapa derradeira.Eis Alexandra Rosa, Xandi para os amigos, a mentora artística e curadora da exposição de presépios exposta nas instalações da Santa Casa da Misericórdia de Beja.

 

Como nasceu o projeto?Tudo começou com um desafio que me foi lançado pelo provedor da Santa Casa da Misericórdia de Beja em 2018: criar um presépio que refletisse o espírito da instituição e o seu enraizamento na cidade e na região, que fosse disruptivo, mas que, simultaneamente, respeitasse os fundamentos católicos. Desta forma criei um projeto em cinco fases, com uma proposta ousada – um presépio que unisse o sagrado e o profano, o passado e o presente, a fé e o quotidiano das gentes alentejanas. Idealizei um presépio único, com alma, diferente de todos os presépios que se podem ver nesta altura do ano.

Como evoluíram estas cinco fases do projeto?A primeira fase foi apresentada em 2018, e até 2021 fomos atingindo novas etapas sequencialmente até à conclusão da quarta fase, e nem nos anos de covid se deixou de trabalhar no sentido de acrescentar em cada ano uma nova fase ao presépio. De 2022 a 2024 foi feita uma paragem de dois anos, por opção da Santa Casa da Misericórdia, relacionada com prioridades da instituição, mas em 2025 foi tomada a decisão de terminar a última fase prevista no projeto.

 O que encontramos de diferente nesta exposição? A diferença está, acima de tudo, na sua abordagem concetual e narrativa. Não se trata de um conjunto de peças isoladas, mas de uma obra em construção, organizada por fases que se articulam de forma lógica e simbólica, criando um verdadeiro percurso de leitura. Cada momento – dos santos padroeiros às estações do ano e às oferendas – está interligado e enraizado na identidade de Beja e do Alentejo, onde as figuras, os materiais e os símbolos dialogam entre si. A originalidade reside na forma como o presépio cruza tradição e contemporaneidade, fé e território, transformando as riquezas locais e a memória coletiva em oferendas ao Menino Jesus, numa experiência artística e espiritual profundamente coerente e diferenciadora.

 Como foi o processo da transição da ideia à concretização? Foi um processo gradual, exigente e colaborativo. Partiu de um conceito artístico claro, mas foi sendo construído ao longo do tempo, muitas vezes com adaptação aos recursos disponíveis, que são, naturalmente, escassos num projeto desta dimensão. Nem sempre foi um caminho fácil. Houve momentos de incompreensão e alguma descrença quanto à necessidade e ao alcance do projeto, bem como dúvidas em relação aos resultados. Ainda assim, a persistência e a convicção acabaram por demonstrar o valor do presépio enquanto projeto cultural, identitário e comunitário. Para além dos artistas envolvidos em cada fase, foi fundamental o contributo da equipa operacional da Santa Casa da Misericórdia de Beja, responsável pela montagem das estruturas, carpintaria, recolha de verduras e apoio logístico. Um papel absolutamente determinante foi desempenhado por Catarina Serraninho, que ao longo dos anos foi o meu braço-direito em todo o processo, e, na sua impossibilidade, por Sandra Galamba, assegurando sempre a continuidade e o acompanhamento diário do projeto. Importa ainda destacar contributos essenciais, muitas vezes discretos, mas decisivos, como o do eletricista João Dores, do senhor Gaitinha, do senhor Ismael, e de todos quantos, ao longo do tempo, deram uma pequena ou grande contribuição para que este presépio se tornasse realidade. É um trabalho feito de muitas mãos, de dedicação e de espírito de missão, onde a arte se constrói também a partir da colaboração e da confiança.Parte superior do formulárioParte inferior do formulário.

 

Que tipo de peças artísticas podem ser encontradas na exposição?Nesta exposição encontramos um conjunto muito diversificado de peças artísticas, criadas especificamente para o espaço da Santa Casa da Misericórdia de Beja e profundamente ligadas à região. As obras resultam da colaboração entre artistas plásticos e artesãos, muitos deles naturais ou residentes no Alentejo, o que reforça a ligação ao território. As peças recorrem maioritariamente a materiais tradicionais e naturais, como o barro (nomeadamente o barro de Beringel), a madeira, a lã, o linho, o algodão, a cortiça, o mármore, a pele e elementos vegetais recolhidos localmente, aos quais se juntam materiais contemporâneos como o vidro, o papel moldado, massas cerâmicas, pastas de modelagem, metais e tintas acrílicas. Encontram-se esculturas, instalações e peças de carácter cenográfico – como a talha central, os santos padroeiros, os reis Magos, os anjos e as ânforas das estações do ano – que combinam técnicas artesanais tradicionais (cerâmica, tapeçaria, bordado, feltragem) com abordagens artísticas tradicionais e contemporâneas (pintura e escultura). Esta diversidade de materiais e linguagens traduz a essência do projeto: um presépio que nasce da terra, da memória e da criatividade coletiva.

 

Como surgiram as colaborações de outros artistas?As colaborações com outros artistas surgiram, sobretudo, através de convites diretos, feitos por mim, a partir de um critério muito claro: a afinidade artística com o conceito do projeto e a ligação ao território. Procurei, sempre que possível, envolver artistas naturais ou residentes no Alentejo, complementando com alguns criadores de outras regiões do País, cujo trabalho já conhecia e que, pela sua linguagem e materiais, se enquadravam na lógica estética e simbólica do presépio. Desde o início, houve também uma consciência clara das limitações de recursos, o que obrigou a fazer escolhas ponderadas, excluindo alguns artistas que tornariam o projeto financeiramente inviável. O espírito de colaboração, a disponibilidade e a sensibilidade para trabalhar num projeto de cariz comunitário e institucional foram determinantes. De salientar que a obra foi totalmente financiada pela Santa Casa da Misericórdia de Beja. Neste contexto, participaram na execução de peças para o presépio os seguintes artistas e artesãos: Alexandra Santos Rosa; António Mestre; Carla Mota; Dulce Correia e Cláudia Abafa (Senhor de Si); Helena Baltazar; Irina Panchoshak; Jorge Salvador; José Francisco; Manuel Carvalho; Paula Salvador; Rita Morais; Sancha Kool; Susana Teixeira; Teresa Brito. O resultado é um projeto verdadeiramente coletivo, onde diferentes linguagens, técnicas e percursos artísticos convergem numa obra comum, construída com respeito, partilha e compromisso.

 Nestes sete anos de duração do projeto, como tem sido a reação dos bejenses e dos visitantes? Ao longo dos anos, a reação dos bejenses e dos visitantes tem sido muito positiva e crescente. No início houve alguma curiosidade e até surpresa perante um presépio diferente do habitual, mas com o tempo o projeto foi sendo compreendido, apropriado e valorizado pela comunidade. O feedback mais frequente prende-se com a emoção, a originalidade e a forte ligação à identidade de Beja. Muitas pessoas regressam todos os anos para acompanhar a evolução do presépio, trazendo familiares e amigos, e há também um interesse por parte de escolas, e visitantes de fora da região, que reconhecem o carácter único e narrativo da exposição. Hoje, o presépio é visto não apenas como uma tradição natalícia, mas como um projeto cultural identitário, que desperta orgulho local e cria uma relação afetiva com quem o visita.

Que emoções vivem dentro de si no momento de concretização plena de um projeto desta monta?O que sinto é, sobretudo, um misto muito intenso de emoções. Há um sentimento profundo de gratidão, nomeadamente, ao senhor provedor da Santa Casa da Misericórdia de Beja pela oportunidade e pela confiança depositada, bem como por todas as pessoas que acreditaram, ajudaram e caminharam ao longo deste percurso. Existe também orgulho, não no sentido pessoal, mas pelo caminho coletivo que foi possível construir, apesar das dificuldades, das dúvidas e dos limites impostos pelos recursos disponíveis. Ao mesmo tempo, há uma forte emoção interior e algum cansaço, próprios de um projeto que exigiu persistência, entrega e resiliência ao longo de vários anos. Acima de tudo, há uma sensação de paz e de missão cumprida, acompanhada da consciência de que esta obra já não pertence apenas a quem a idealizou, mas à cidade de Beja, às pessoas que a visitam e à memória coletiva que ajudou a criar.

 O que se segue à quinta fase? Após a concretização da quinta fase, o sentimento é, simultaneamente, de encerramento de um ciclo e de abertura a novas possibilidades. Este projeto foi pensado como um percurso com várias etapas e a fase das “Adoração e Oferendas ao Menino Jesus” completa, do ponto de vista concetual, a narrativa do presépio. Neste momento, não existe ainda um novo projeto definido. Há, acima de tudo, a vontade de consolidar, cuidar e valorizar o que foi construído, permitindo que o presépio continue a ser vivido, visitado e apropriado pela comunidade. Qualquer continuidade ou novo desafio surgirá naturalmente, a partir do tempo, da reflexão e das condições existentes, sempre com o mesmo respeito pela identidade do espaço, da instituição e da cidade de Beja. Quem sabe se o futuro não trará novos desafios ou se outras instituições locais e regionais não sentirão vontade de iniciar projetos com esta mesma dimensão artística, cultural e comunitária.

 

Até quando pode ser visitado?Vai estar patente até dia 8 de janeiro de 2026, das 10:00 às 20:00 horas, todos os dias, à exceção do dia 25 de dezembro e do dia 1 de janeiro de 2026.

 

 

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O significado das cinco fases do presépio

A primeira fase, inaugurada há alguns anos, apresenta um cenário bucólico e rústico, construído com materiais reaproveitados – antigas portas e janelas do edifício da misericórdia – e adornado com fibras naturais como a lã, o algodão e o linho. No centro da composição, uma talha em barro de Beringel, executada pelo oleiro António Mestre, simboliza a pureza e o amor divino. Dentro dela, o presépio ganha forma em tecidos, tapeçarias e rendas feitas à mão, numa fusão perfeita entre artesanato e arte contemporânea. Um anjo de pele escura completa a cena, representando a universalidade da fé e a missão das misericórdias na promoção da inclusão e da igualdade. Na segunda fase, os santos padroeiros das freguesias da cidade de Beja saúdam e homenageiam o nascimento de Jesus. É este o mote que orienta a fase, em que os santos oragos das freguesias de Beja – Santiago Maior, São João Batista, Santa Maria e Salvador – abraçam o presépio como protetores da cidade e do seu povo. Cinco artistas plásticos foram convidados a reinterpretar as imagens tradicionais dos santos, criando obras que fundem devoção e expressão pessoal. Cada figura é o reflexo da fé que atravessa gerações e se mantém viva no quotidiano da cidade. Esta fase ganha ainda mais relevo por simbolizar o encontro entre as antigas paróquias e a nova realidade administrativa, mantendo vivo o sentido espiritual que sempre guiou as comunidades locais. A terceira fase, intitulada “Alquimia”, propõe uma reflexão sobre a dimensão espiritual da transformação. Inspirada na antiga ligação da Santa Casa da Misericórdia de Beja ao Hospital de Nossa Senhora da Piedade, a obra relaciona a alquimia – precursora da química moderna – com o poder curativo da fé. Sete anjos dominam esta composição. O sete, considerado o número da perfeição, remete para as hierarquias celestiais e para o equilíbrio entre o corpo e o espírito. Nesta mostra vamos ter representados os Serafins e os Querubins que fazem parte da primeira tríade, que são os anjos mais próximos de Deus e que desempenham suas funções junto de Deus. A segunda tríade é constituída pelos príncipes da corte celestial Dominações, Virtudes, Potestades, sendo que optamos por representar apenas os últimos por serem os condutores da ordem sagrada e os anjos associados ao nascimento e à morte. A terceira tríade está mais intimamente ligada ao mundo material e é composta pelos anjos que estão incumbidos dos caminhos das nações e dos homens. Os arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael representam as três virtudes da misericórdia: a força, a palavra e a cura – valores que continuam a inspirar o trabalho da instituição. Também da terceira tríade, os anjos, propriamente ditos, têm a guarda individual de cada ser humano, no sentido de os afastar do mal e encaminhá-lo ao bem. Na quarta fase, o presépio abre-se ao mundo. Os reis Magos, figuras universais do imaginário cristão, são aqui reinterpretados como mensageiros da diversidade e da fraternidade entre os povos. Baltazar, Gaspar e Belchior são acompanhados por três animais simbólicos – o camelo, o elefante e o leão –representando as suas origens na Arábia, na Índia e na Pérsia. Os presentes que oferecem ao Menino – ouro, incenso e mirra – traduzem-se como metáforas da humanidade: o ouro, símbolo da realeza; o incenso, da espiritualidade; a mirra, da mortalidade e da compaixão. O caminho até ao presépio é pavimentado com azulejos hidráulicos, iguais aos das misericórdias portuguesas, num gesto de ligação entre todas as casas de misericórdia do País, e forma, no chão, uma cruz que simboliza o nascimento e a morte de Jesus. Acima, estrelas suspensas iluminam o percurso, recordando a luz que guia o homem na sua busca interior. Neste ano, a Santa Casa da Misericórdia de Beja inaugurou a quinta fase do projeto, intitulada: “Adoração e Oferendas ao Menino Jesus”. A proposta celebra a relação entre o homem, a natureza e o tempo, através de quatro ânforas monumentais que representam as estações do ano – primavera, verão, outono e inverno. É desta forma que o Alentejo e Beja podem oferecer ao Menino Jesus o melhor que têm: os produtos dos seus campos, as suas gentes, a sua cultura e a sua fé. Cada ânfora é uma personagem simbólica, inspirada nas tradições, nas figuras e nas paisagens do Alentejo. A primavera, peça inspirada na antiga festa das Maias, celebra o ciclo da vida e presta homenagem à deusa Maia, símbolo do despertar da natureza e da abundância. Maia é representada como personificação da fertilidade e do renascimento. Nas suas costas repousa um cordeiro –sinal de pureza e referência à Páscoa cristã –, enquanto ao seu redor se ergue o pastor alentejano, guardião da terra e da memória. Entre papoilas, malmequeres, amendoeiras em flor e silarcas, a paisagem floresce em cores vivas. Aves, borboletas e caracóis completam o retrato vibrante da biodiversidade do Alentejo. O verão foi inspirado nas antigas aguadeiras alentejanas, mulheres que levavam água aos trabalhadores dos campos, a ânfora do verão simboliza a generosidade, o trabalho e a partilha. A figura central é a da aguadeira, de rosto sereno e gesto firme, portando o cântaro que sacia a sede e alimenta a vida. O interior da peça revela a paisagem estival alentejana – campos de trigo, girassóis, oliveiras e casas caiadas sob o calor intenso. A ânfora do outono é dedicada à ceifeira alentejana, símbolo da abundância e da gratidão. Vestida com as cores da terra – ocres, castanhos e dourados –, a figura central segura a foice e o feixe de espigas, enquanto no interior da ânfora se revela uma natureza morta tridimensional. Uvas, romãs, castanhas, abóboras e azeite representam as oferendas da colheita e o agradecimento pelos frutos da terra. Cada alimento, além do seu valor simbólico, recorda a passagem do tempo e a promessa de vida eterna no nascimento de Cristo. A ânfora do inverno presta homenagem a Mariana Alcoforado, figura emblemática de Beja e símbolo da força e da introspeção feminina. O exterior representa a freira apaixonada e resiliente; o interior revela a paisagem invernosa do Alentejo – o castelo de Beja, as casas brancas, o vinho, as azeitonas, a lenha e o pão – elementos que falam de resistência e comunhão. A peça combina barro, madeira e cerâmica com tons suaves e frios, traduzindo o recolhimento da estação e a esperança que renasce no silêncio. Com estas cinco fases, o presépio da Santa Casa da Misericórdia de Beja tornou-se um símbolo de arte viva e espiritualidade partilhada. Entre o barro e a luz, entre o gesto do artista e a fé do crente, a obra recorda que o presépio não é apenas memória do nascimento de Cristo – é também a celebração de tudo o que é humano, natural e eterno. Este presépio é uma oferenda à terra e à fé, à nossa história e à beleza do que somos. 

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