Texto | Luís Miguel Ricardo
Nasceu no ano de 1968, em Lisboa, e por Lisboa se fez menina e mulher, e por Lisboa estudou História de Arte, na Universidade Nova, e de Lisboa saiu para o mundo. Casou-se com um diplomata italiano e foi capaz de mudar de casa e de país várias vezes e de adaptar-se a modos de vida totalmente diferentes. Do seu cardápio profissional fazem parte atividades distintas, como hospedeira, professora, guia turística, secretária, consultora cultural, jornalista e diretora editorial na plataforma digital “Art&Architecture” (Portugal e Brasil). Tem residência fixa em Elvas, mas atualmente vive no Brasil, onde está a finalizar um livro sobre arquitetura de Brasília. Sendo uma mulher do mundo, revela detestar “viajar de avião” e confessa gostar “de fazer passeatas de muitos quilómetros” acompanhada pela sua cadela podengo e de “inventar histórias” que a levam “ainda mais longe”. No campo da escrita, tem publicado vários artigos sobre história de arte, em jornais da especialidade; algumas poesias e contos dispersos em antologias; a obra A História de Panglima, o Escravo de Fernão de Magalhães, o seu primeiro livro de ficção; A Guerreira, com o qual ganhou o “Prémio Literário Luís Vilaça”, em 2024; Partir, publicado no Brasil; e O Marechal Melómano, publicado na revista literária “Palavrar”, de abril de 2024. Eis Vera Nobre na primeira pessoa!
Quando e como foi descoberta a vocação para as letras? Gosto de escrever desde pequena e as minhas redações na escola sempre tiveram muito sucesso. Depois, em casa, chegavam a organizar recitais em família, onde eu lia as minhas poesias. Fui muito acarinhada nesse sentido, apesar de ter um pai engenheiro que sempre lutou contra as minhas incapacidades matemáticas. No entanto, mais tarde, preferi estudar História, porque o meu sonho era trabalhar como conservadora de museu. Mas continuei sempre a escrever, sob várias formas. Os escritores que mais me influenciaram foram a Sophia de Mello Breyner, a Marguerite Duras e o Gabriel Garcia Marquez.
Como se dá a ponte entre a Vera jornalista, que escreve artigos sobre história e arquitetura, e a Vera escritora de ficções?Existe sempre uma interligação entre a minha formação em História e as ficções que escrevo. Quando estava na universidade, trabalhei como investigadora para um livro escrito por um meu professor. Foi um trabalho de fundo, muito exigente, que me fez passar muitas horas na Torre do Tombo e onde aprendi mais do que ao longo de todo o curso. Decifrar as fontes e de lá extrair informações é extraordinário e inspirador – e este é afinal o processo de qualquer tipo de escrita: ter uma história para contar. Ou partimos de fontes históricas para a ficção histórica ou de factos da vida quotidiana, mas a ficção parte sempre de um diamante encontrado, em algum lado, no seu estado bruto, sendo depois esculpido e trabalhado pela imaginação.
Quais as fontes que dão de beber à inspiração?Os personagens que tenho encontrado através do meu trabalho como historiadora de arte são inúmeros e fascinantes. A Guerreira foi inspirada na estátua da heroína Inês Negra, de José Rodrigues, que está em Melgaço. O Marechal Melómano tem como protagonista a setubalense Luísa Todi e partiu da observação do baixo-relevo “As Alminhas da Ponte”, do escultor Teixeira Lopes. Ele retrata o desastre da ponte das Barcas, ocorrido em 1809, no Porto, quando o povo tentava fugir às tropas do marechal Soult, durante as Invasões Francesas. Luísa Todi estava ali também, tentando fugir e sobreviveu por milagre. Acredito que o papel da literatura é o de abrir janelas e fazer-nos viajar no tempo e no espaço através das histórias.
Para além da escrita, foi experimentada mais alguma forma de arte?Adoro desenhar, mas faço-o de uma forma totalmente amadora e que para mim é também terapêutica. É uma atividade relaxante, que permite encontrar-me comigo mesma e concentrar-me no momento presente, observando o que me rodeia.
A História de Panglima, o Escravo de Fernão de Magalhães. Que livro é este? Escrevi este livro quando morava nas Filipinas. Na altura, comemoravam-se os 500 anos da viagem de circum-navegação e foi publicada muita documentação sobre a expedição de Magalhães. Eu fiquei literalmente obcecada com a história, que tem sido totalmente ignorada, do escravo filipino Panglima. Quando Fernão de Magalhães partiu na sua expedição marítima levou Panglima consigo, inscrevendo-o na lista de tripulantes como intérprete e não como escravo. Fernão de Magalhães fez-lhe um testamento onde deixou escrito que lhe concederia a liberdade, provando a amizade que tinha por ele. O livro recorda, através da história de Panglima, o direito fundamental à liberdade de todos os seres humanos. É um livro especialmente dedicado aos mais jovens, que estudam história na escola e não conhecem este personagem.
Sendo a Vera uma nativa de Lisboa, como surge o Alentejo no seu trajeto de vida?Nasci em Lisboa, mas tenho família alentejana e algarvia. A minha avó materna estudou em Beja, num colégio de freiras que era muito reputado no seu tempo, e de lá saiu para se casar com um médico algarvio. A minha outra avó era de origens espanholas e foi ela quem despertou em mim um amor especial pela raia alentejana. Tenho uma casa de família em Elvas, onde fixei residência e à qual dedico muito do meu tempo. É lá que voto, foi lá que adotei a minha cadela, foi lá que fiz novos e bons amigos. Acolheram-me calorosamente apesar de eu ser uma elvense recente. Tendo vivido em tantos lugares deste mundo, tão cosmopolitas alguns, tão gentrificados outros, encontro no Alentejo a pacatez e a autenticidade que procuro.
E que papel desempenha o Alentejo na produção literária de Vera Nobre?Está sempre presente, direta ou indiretamente. São as raízes do meu imaginário e da minha linguagem. A raia alentejana em si também faz parte do meu universo, atravessei muitas vezes a fronteira durante a minha infância e sempre achei fascinante esse limiar entre os dois países. Até a história da Inês Negra, melgacense de gema, me atraiu pelo facto de ela ser raiana.
Algum momento inusitado experimentado ao longo do percurso literário?Recordo um momento curioso, quando partilhei com a embaixadora das Filipinas em Portugal, Célia Feria, que tinha escrito um livro sobre o escravo filipino de Magalhães. Ela disse-me: “Eu estava a pensar em escrever essa história!”. Ficou muito emocionada e acabou por prefaciar o meu livro, onde afirma a importância de dar voz a este personagem que tem sido ignorado pelos livros de História. Panglima, sendo originário das ilhas Filipinas, terá sido o primeiro balikbayan (emigrante em Tagalog). E também terá sido o primeiro homem a dar a volta ao mundo, regressando à sua terra natal na Ásia.
Qual a opinião sobre o universo literário em Portugal? É muito pequeno e marcado por muitos preconceitos que classificam os autores e as editoras segundo categorias de “ilustres” ou “não ilustres”. Ainda por cima, os “ilustres” são, na sua maioria, homens. É muito redutor, pois, na verdade, quanto mais variedade de vozes houver mais rico é o panorama literário. Visto aqui do Brasil, onde a variedade de editoras e autores é enorme e muito colorida, parece-me tudo muito mesquinho. Mas é o que temos, à escala do nosso país.
E o acordo ortográfico?Sou a favor do acordo ortográfico. Não nos podemos fechar na nossa concha e virar as costas ao vasto mundo lusófono, nem esquecer que o português, tal como as outras línguas, é uma língua viva, em constante mudança. Como disse Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”.
Que sonhos literários moram em Vera Nobre?Todos os dias acordo com um projeto novo. Ou, pelo menos, avanço com mais uma página no romance que estou a escrever.
O que está na “manga” a curto e médio prazo?Entre outros, está o projeto de traduzir A História de Panglima, o Escravo de Magalhães em inglês, para publicação nas Filipinas e noutros países. Vou participar num seminário internacional sobre história dos descobrimentos, em dezembro, na Biblioteca Nacional, com o livro já traduzido. E estou a finalizar um livro sobre arquitetura no Brasil, em parceria com a minha amiga fotógrafa Isabel Nolasco, também originária de Elvas, que vai sair no Brasil em breve.