Diário do Alentejo

“Foi na poesia que encontrei o meu talento para me exprimir através da escrita”

21 de outubro 2025 - 08:00
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Texto | Luís Miguel Ricardo

 

Nasceu em 1970, em Évora, mas foi a vila do Vimeiro, no concelho de Arraiolos, que o viu fazer-se menino e rapaz. Em 1993 fez-se professor, e com a cartilha da Edução na alma cirandou pelas terras de lava açorianas e, depois, pelas terras abafadas do Alentejo, fixando residência em Alcáçovas, em 1998. Uma fixação que se estendeu pela vida afora, que se estendeu até à atualidade.Diz que nos tempos livres “vai escrevendo de forma furtiva, escondida e clandestina”. E escreveu romances, e escreveu contos, e escreveu poemas. E publicou uns e outros.É membro fundador da Assesta – Associação de Escritores do Alentejo, fazendo parte dos corpos sociais da mesma associação desde 2015.Da sua bibliografia destaca-se: o romance de estreia A Vingança das Vagas, publicado em 2012 pela editora Esfera do Caos Editores, vários textos feitos contos, editados em múltiplos projetos literários – “Terno Tesouro”, incluído na coletânea Contos de Caneco, uma edição da Admira, em 2013; “Entre o Sado e a Solidão”, incluído no projeto de literatura de viagens “Stories do Alentejo”, edição Lugar da Palavra Editora, em 2013; “A Ilustre Luta dos Leitores de Pensamentos”, integrado na obra Contos Assesta – Alentejo, uma edição da Assesta – Associação de Escritores do Alentejo, em 2015; “Sedento”, incluído na coletânea Contos Assesta – A Água, publicado pelo grupo Narrativa, em 2019; “Uma Travessia Feita de Luz e Melodias”, incluído na obra Este Silêncio que se Ouve e que se Escreve, publicado pelo Movimento IP2N4 Art, em 2023; “O choro”, integrado na coletânea Contos Assesta – Liberdade, uma edição da Assesta – Associação de Escritores do Alentejo, em 2024; “O mineiro”, integrado na obra Contos Assesta – Amor, uma edição da Assesta – Associação de Escritores do Alentejo, em 2025 –, e as obras de poesia Perversos Versos de Paixões Impossíveis, editado pelo Projeto Foco, em 2025, (In)felicidade, Setenta Poemas Imperfeitos, publicado na NoTag, em 2025, e Autodestruição, também publicada na NoTag, em 2025. Eis José Teles Lacerda na primeira pessoa.

 

Como é que um autor que se tem destacado na narrativa, romance e conto, se vai “atracar” à poesia? Depois de ter descoberto que era doente oncológico, achei essencial dedicar-me à escrita como uma das formas de terapia. Por outro lado, com o evoluir da doença, considerei que estava incapaz de realizar a correta revisão dos meus textos, principalmente, o romance. Simultaneamente, durante a noite, registou-se um fenómeno inesperado: devido às insónias que um processo de quimioterapia origina, o meu cérebro continuava ativo e comecei a produzir frases que rimavam com muita facilidade.

 

Três publicações num ano. Quais as fontes de inspiração para tamanho desassossego poético?O prazer que a criação destas poesias originou foi a grande fonte de inspiração para as três obras que criei em 2024 e que publiquei em 2025. Considero que foi na poesia que encontrei o meu talento para me exprimir através da escrita.Alguns leitores dizem que a sua poesia é forte e crua. Concorda com estes predicados? Sim, também concordo que a minha poesia seja demasiado forte. Talvez seja derivado de toda a luta que tenho tido com a doença. Um doente oncológico começa a ver o mundo de outra maneira. Valoriza aspetos da vida que algumas pessoas não dão importância, e está mais atento ao sofrimento.

 

Fale-nos, individualmente, da sua trilogia poética…Relativamente aos Perversos Versos de Paixões Impossíveis, alguns dos poemas da obra retratam paixões que nunca deveriam ter existido, noutros casos, fala de relacionamentos bizarros, mas, no geral, é virada para as emoções que resultam da relação com o outro. (In)felicidade: toda a obra já retrata aspetos mais banais da vida, tendo como foco, em muitos dos poemas, a doença e a morte. A obra Autodestruição fala-nos da destruição do corpo humano e da destruição do mundo por causa das guerras e das crises climáticas. Nestes poemas, figuras bíblicas e míticas surgem como formas de resistência às adversidades do mundo. O livro é um apelo à coragem.

 

Que ligações existem entre as três obras?Uma das ligações existente é o sofrimento. Aqui e acolá existem algumas memórias e episódios que fui vivendo ao longo da vida.

 

Depois deste abraço intenso à poesia, onde fica a narrativa de ficção no percurso literário de José Teles Lacerda? Atualmente não os considero conciliáveis, e a aposta é na poesia, pelo prazer que ela me dá.

 

Qual a opinião sobre o universo da escrita poética em Portugal e no Alentejo?Em relação ao universo poético, noto que existem muitos novos autores a dedicarem-se à escrita de poesia, porém, existem dificuldades na edição de livros, existindo editoras que se aproveitam desse obstáculo. No Alentejo essas dificuldades sentem-se ainda mais, embora certas instituições, de que é exemplo a Biblioteca Municipal de Beja José Saramago, desenvolvam um trabalho meritório na divulgação da poesia e das novas vozes poéticas emergentes.

 

Que sonhos poéticos moram em José Teles Lacerda?José Teles Lacerda ainda continua a produzir poemas e tem o sonho poético de voltar a publicar mais um livro.José Teles Lacerda concedeu a presente entrevista cinco dias antes de partir. Partiu no dia 10 de outubro. Partiu embalado na serenidade que lhe marcava o carácter. Partiu resolvido com a vida e com os seus, familiares e amigos. Partiu, mas ficou no pensamento e no coração dos seus, familiares e amigos. Partiu, mas ficou em narrativa. Partiu, mas ficou em poema…

 

Poemas

Para exporem ao Mundo as minhas chagas,Tornando-me num exemplo de imensa mágoa,Esculpiram o meu rosto na espuma das vagas…Escreveram o meu nome na transparência da água.

 

Enalteceram, assim, a minha natural resistência,Afirmando que eu era forte, face ao flagelo,E, recorrendo às artimanhas da ciência,Gravaram a minha face num bloco de gelo.

 

Depois, antecipando-se a um Mal que se consuma,Querendo, assim, dar-me forças e alento,Desenharam-me na densidade da bruma,Mas entregaram a gravura às fúrias do vento.

 

Insurgi-me, eu, adverso a tal exaltação,Embora seja um ser que a morte não receia,Eu, uma fugaz forma de ilusão…Eu, uma frágil construção de areia…Confessei-me perdido em dissertações e dilemas,E morri a vomitar verbos, palavras… poemas!

 

José Teles Lacerda, Alcáçovas, 6 de novembro de 2024

LACERDA, José Teles, (In)felicidade, Setenta Poemas Imperfeitos, No Tag, 2025.

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