Miguel Rego | Arqueólogo
Barrancos assistiu, no passado dia 16, a uma jornada de trabalho que assinala, definitivamente, o reconhecimento daquela que é a língua por excelência da comunidade, o barranquenho, e a necessidade do envolvimento de toda a comunidade na sua salvaguarda e valorização.
Integrada no II Congresso Internacional “O Barranquenho, ponte entre línguas e culturas”, que teve lugar a 15 e 16 deste mês, a jornada do segundo dia foi exclusivamente dedicada ao “Barranquenho: património de Barrancos” e ali foram apresentados os resultados do Programa de Preservação e Valorização da Língua e Cultura Barranquenhas (Pppvlcb), trabalho realizado por uma equipa de investigadores de várias estruturas de natureza universitária e de investigação, nomeadamente, Maria Filomena Gonçalves e Victor Diogo Correia, da Universidade de Évora, Maria Vitória Navas, da Universidad Complutense de Madrid, e Vera Ferreira, do Centro Interdisciplinar de Documentação Linguística e Social.
Fruto desse trabalho, iniciado em 2017 no âmbito do I Congresso Internacional do Barranquenho, foi agora entregue à Câmara Municipal de Barrancos uma Convenção Ortográfica do Barranquenho, um Dicionário de Barranquenho e uma Gramática Básica, documentos que servem de referente a um percurso de reconhecimento da língua barranquenha, que tem aqui a fundamentação científica que necessitava para consolidar a história dos vários séculos que transporta e cuja salvaguarda, reconhecimento e valorização passa agora para a esfera da comunidade local, exigindo dela uma atitude que não se limite ao sentir o orgulho de ser o baú desse tesouro raro da especificidade cultural do concelho, mas o papel de eternizar um dos elementos maiores do património imaterial do nosso país e do Alentejo: a língua barranquenha.
Os documentos âncora da língua barranquenha permitirão agora uma ação mais objetiva na defesa e perpetuação do falar barranquenho, contribuindo, nomeadamente, para o início do seu ensino na escola local, a sua utilização em documentos oficiais e de comunicação através da escrita, desta língua nascida na raia e que era (ainda é), até agora, uma língua de falantes. Uma espécie de língua de encruzilhada do português, do castelhano e do barranquenho, nos arcaísmos que aí se encontram. Um “dialecto”, lhe chamava José Leite de Vasconcelos, quando pouco antes da sua morte, em 1941, aprontou o seu trabalho Filologia Barranquenha – Apontamentos para o seu Estudo, publicado postumamente, em 1955, mas para muitos uma língua com todas as regras que essa “classificação” exige.
A natureza científica que fundamenta a língua barranquenha tem como antecedentes o esforço continuado do poder local na sua salvaguarda, que se materializa na decisão tomada pela Assembleia Municipal de Barrancos, a 24 de junho de 2008, de classificar o dialeto barranquenho como Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal. Procurou-se, com essa decisão, sensibilizar a própria comunidade a promover a expressão oral que em poucas gerações corre o risco de não sobreviver “à padronização inerente à escolarização e ao envelhecimento da população.”
Já mais recentemente, a 30 de dezembro de 2021, a lei 97/2021, votada por unanimidade na Assembleia da República, reconhece a existência do barranquenho, estabelecendo-se medidas para a sua proteção, promoção e valorização e da identidade cultural que a contextualiza. Conforme o artigo 2.º da citada lei, “O Estado Português reconhece o direito a cultivar e promover o barranquenho, enquanto veículo de transmissão do património cultural imaterial, instrumento de comunicação e elemento de reforço de identidade da população de Barrancos”, assim como “o direito à aprendizagem do barranquenho nas escolas, em articulação com a autarquia local e o agrupamento de escolas, em termos a regulamentar pelo Ministério da Educação”.
A língua barranquenha é uma língua de expressão oral. Conforme Vitória Navas, professora da Universidad Complutense de Madrid, e, desde 1987, incansável investigadora no processo de divulgação e estudo da língua barranquenha, esta é uma língua mista, que terá um léxico com base portuguesa e a estrutura gramatical de base espanhola.
Fruto dessa especificidade está a localização de Barrancos, terra de fronteira, que tem várias localidades do país vizinho mais próximas de si do que localidades portuguesas, razão maior das relações familiares e culturais que marcam a comunidade e que se refletem no falar, mas também em algumas manifestações de natureza cultural como as touradas, as festividades, alguma da gastronomia.
Mas a questão histórica tanto da formação dos “Barrancos”, pertencente à vila fortificada de Noudar, logo desde a sua génese, assim como do processo de povoamento e consolidação do seu tecido socioeconómico, está umbilicalmente mais ligado a Castela/Espanha que a Portugal.
A fundação de Barrancos rondará os séculos XIII/XIV, por famílias vindas da zona norte da atual província de Huelva, e que, veja-se o paradoxo, serão essas famílias objeto de violência pelas gentes do lado de “lá”, porque acusadas de impedir o processo de expansão territorial da vizinha Encinasola nos Campos de Gamos. Os novos barranquenhos, declarando-se dependentes do alcaide do Castelo de Noudar, provocam a pertença do território “dos Barrancos” à coroa portuguesa. Várias questões de natureza jurídica, com episódios de violência física à mistura, sucedem-se nos séculos XV e XVI, obrigando à intervenção ao mais alto nível de representantes das duas coroas, até que a questão fica totalmente resolvida.
Como episódio caricato, já após o processo de Restauração (em 1640) e das guerras que se lhe seguem, Barrancos é praticamente destruída pelas tropas portuguesas por estas acharem que já estariam em Espanha… fruto do falar das suas gentes?
Mas é no século XIX que um profundo povoamento da zona, com populações vindas do sul da província de Badajoz, com todas as implicações de relacionamento familiar, económico e social que essa realidade traduz, provocará a consolidação deste falar, tão especial, tão vivo e tão musical que é a língua barranquenha. A língua que foi fundamental no processo de comunicação que levou à instalação de dois campos de refugiados em terras barranquenhas no tempo da guerra civil de Espanha (que salvou cerca de 1300 pessoas de morte certa) e do “contrabando de sobrevivência” que ajudou as gentes de Barrancos a sobreviver aos tempos difíceis que caracterizaram os três primeiros quartéis do século XX.
O processo de valorização da língua, pode dizer-se, começa agora. Já estando oficialmente reconhecida pela lei 97/2021, e estando agora na posse dos documentos base de natureza científica que permitem desenvolver e enriquecer o trabalho realizado pelos investigadores do Programa de Preservação e Valorização da Língua e Cultura Barranquenhas, a comunidade barranquenha não pode perder a oportunidade de, dignificando a memória e valorizando o seu legado, promover a salvaguarda de um dos mais extraordinários instrumentos de desenvolvimento cultural e social: a língua enquanto forma de expressão da comunidade e plataforma de contacto com o mundo.