Entre 1900 e 1975 as formas de comunicação escrita e à distância sofreram transformações significativas, enquadradas nos processos de modernização, urbanização e integração social das comunidades. O telegrama, enquanto meio de comunicação rápida, adquiriu relevância tanto na esfera institucional como nas vivências do quotidiano, representando um documento de valor patrimonial, identitário e histórico.O telegrama, transmitido por via telegráfica, consistia em mensagens curtas e concisas, frequentemente utilizadas para comunicar eventos urgentes como nascimentos, falecimentos, convites para celebrações ou informações comerciais.
A par dos telegramas, as cartas manuscritas mantiveram relevância, sendo celebrações ou informações comerciais. A sua linguagem específica, pautada pela economia de palavras, constitui hoje um campo de análise para a compreensão dos códigos de sociabilidade, das expressões linguísticas utilizadas e das prioridades comunicacionais de cada época.
Entre os anos de 1930 e 1970 a popularização do telefone fixo alterou gradualmente as dinâmicas comunicacionais, embora em muitas regiões rurais o telegrama e a carta continuassem a ser o principal meio de contacto à distância, sendo considerados instrumentos de ligação entre comunidades e familiares migrantes.
Do ponto de vista da memória coletiva e da salvaguarda patrimonial, os telegramas, cartas e postais antigos constituem documentos relevantes para o estudo das redes sociais e familiares, das linguagens utilizadas e dos ritmos de comunicação de uma época marcada por profundas transformações políticas, económicas e sociais, incluindo o impacto das guerras mundiais, os movimentos migratórios e as mudanças nos modos de vida rurais e urbanos.
A preservação destes documentos em arquivos municipais, bibliotecas, museus e acervos pessoais torna-se, assim, fundamental para a reconstrução de micro-histórias e para a valorização do património imaterial, possibilitando investigar práticas de comunicação e as emoções associadas à espera e receção de notícias. Estes testemunhos materiais, quando integrados em projetos de digitalização, como é o Arquivo Digital do Cante, e respetiva disponibilização pública, promovem o acesso alargado a fontes históricas e incentivam a apropriação comunitária do património documental. Não raras vezes deparamo-nos quer com telegramas, quer com cartas manuscritas, nos arquivos dos grupos de cante. Assim como com faxes que proliferaram, sobretudo, a partir do final dos anos 80, princípios de 1990, mas que, regra geral, já não são legíveis.
A salvaguarda desta documentação, comprovativa das diversas formas de comunicação ao longo do tempo, para além de constituir um regresso ao passado, é reveladora também da importância de alguns eventos em que os próprios grupos participavam, nesses períodos, a par de uma cordialidade na escrita, sobremaneira interessante também.
Partilhamos hoje com os leitores deste jornal dois documentos que se enquadram nas tipologias comunicacionais atrás referenciadas, um telegrama e uma carta manuscrita.
O telegrama que se publica, endereçado ao Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, datado de 24 de agosto de 1967, dá conta da anulação dos espetáculos agendados para Faro e Vila Real de Santo António. Estes espetáculos promovidos pelo Gabinete para o Desenvolvimento Turístico do Algarve, em Faro, Portimão e Vila Real de Santo António, iriam decorrer a 20 e 27 de agosto e 3 de setembro de 1967, mas entendeu o promotor que não houve condições para a sua realização. Pelo que utilizou o telegrama, após telefonema, para registar tal anulação de forma célere. Dando à escrita manual particular importância, os diretores dos grupos, até antes do final do primeiro milénio, recorriam e utilizavam a mesma, também como forma demonstrativa de respeito pelo destinatário. A carta que se publica, datada de 5 de julho de 1995, consta do arquivo documental do Rancho Coral e Etnográfico de Vila Nova de São Bento e trata-se de um convite endereçado pelo Grupo Coral Os Arraianos de Ficalho, no âmbito da organização do 1.º Encontro de Grupos Corais e Ranchos Folclóricos em Ficalho no dia 12 de agosto de 1995. As cartas manuscritas, hoje em desuso, mantiveram-se ainda por algum tempo mais, mas já muito pontualmente e, sobretudo, por falta de adaptação dos responsáveis dos grupos às máquinas de escrever e posteriormente aos computadores. Até que o email e as novas tecnologias vieram forçar a que se tomassem outras medidas que hoje dificultam a recolha de informação fundamental para a historiografia do cante. Sinais dos tempos e do avanço tecnológico….
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt