O Arquivo Digital do Cante completou um ano de existência. Há um ano que está no terreno, sobretudo, no Baixo Alentejo, digitalizando arquivos dos grupos, para que se possa construir a história e a memória do cante a partir da história dos próprios grupos. Este é um trabalho longo, moroso, mas tudo aquilo que se alcançar jamais se perderá, conforme foi dito e demonstrado na Ovibeja, onde os responsáveis do projeto foram prestar contas do trabalho desenvolvido.
Entretanto, os grupos continuam a sua atividade: o Rancho de Cantadores de Vila Nova de São Bento foi até Osaka (Japão) cantar as nossas modas e deixou a sua marca. Muito positiva, aliás! Os Cantadores de Redondo, no Alentejo Central, por sua vez, assinalam 50 anos de atividade. Também este, um grupo carregado de história e simbolismo, desde logo por ter ligado à sua fundação e atividade nomes como os de Zeca Afonso, Vitorino e o Janita Salomé, entre outros, e por assumir um repertório diferenciado dos demais, fruto da sua localização geográfica, do tempo em que foi criado e de uma natural irreverência das gentes redondeiras.
Noutro espetro da atividade dos grupos, semanalmente ocorrem encontros de grupos corais, tendo como pano de fundo os mais diversos cenários. Aniversários dos respetivos grupos, festas e feiras locais ou até mesmo o simples argumento de promover um espetáculo de divulgação e promoção do cante nos seus territórios de origem, convidando, para o efeito, outros grupos congéneres por forma a enriquecer o evento, cuja tipologia, num ou outro local, deverá ser repensada.
Porém, para que tudo isto aconteça é preciso ter o que cantar, são precisas as modas, as cantigas. Independentemente da origem do cante, sefardita ou não, árabe ou nem por isso, talvez saído das escolas claustrais de Évora ou impulsionado pela presença dos Paulistas na serra d’Ossa, a verdade é que ao longo dos tempos se foram escrevendo e cantando diversos temas, diversas modas. Outras ter-são perdido nos tempos. Algumas nunca terão passado pelo papel, sendo cantadas e transmitidas oralmente de geração em geração. De algumas nunca se conhecerá quem foi o autor, já de outras, sobretudo, mais recentes, sabe-se quem foram os autores ou, melhor dizendo, os construtores. Daquelas cuja autoria não se conhece, facilmente se indicam ser de raiz tradicional, mas, num caso e noutro, poderá não ser bem assim. O que se constata ao analisar alguns cancioneiros é que há versos, quadras completas até, que percorreram o mundo, que aparecem ali e acolá, nesta ou naquela moda, nesta e naquela região ou país. Algumas foram extraídas dos folhetins e da designada literatura de cordel, outras são encontradas em romances e sonetos ainda mais antigos. Juntando a estas, outras, de forma a compor toda a obra e a mensagem que se queria passar.
“Na tarefa de escolher o que apresentar no novo contexto formal, que era o ‘grupo coral de cante alentejano masculino’, apenas algumas foram conservadas. De fora ficaram, naturalmente, muitas modas e cantigas entoadas no feminino, mas também outras peças como modas de baile, cantigas mais ligeiras e cantos realizados em épocas específicas”.¹
Algumas das modas escolhidas para os grupos foram objeto de alterações, para se melhor adequarem ao seu canto coral. Caso da “Moda da lavoura”, cantada singularmente durante o trabalho e adaptada a um coro de vozes por Estevão Branco Olhicos, antigo mestre do Grupo Coral da Casa do Povo da Amareleja.²
Neste caso em concreto sabe-se quem foi o construtor da moda, mas em muitos outros não, e seria interessante saber quem foram tais autores, de onde vieram, em que período viveram, que Alentejo colocaram nas modas e em que se inspiraram na produção das mesmas.
Estevão Branco Olhicos terá sido um entre tantos outros, mas, por se (re)conhecer a sua obra, será homenageado, precisamente, na Amareleja, amanhã, dia 17, pelo Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense.
Não nos caberá a nós, do Arquivo Digital do Cante, desenvolver este estudo, porém, cabe-nos prosseguir esta árdua tarefa de diariamente, com e junto dos grupos, não deixar escapar um papelinho que seja, para que outros possam usar este trabalho como uma nova fonte fundamental ao desenvolvimento do conhecimento do cante alentejano. Porque este é o nosso objetivo primeiro.
Florêncio Cacete
Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
¹ Cabeça, S. I. (2015). Estrutura e Processo de Formação das Formas Culturais – O Caso do Cante Alentejano. Universidade de Évora² Idem