Texto | Florêncio CaceteCoordenador do Arquivo Digital do CanteCIDEHUS/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
Percorrido quase um ano do início do projeto do Arquivo Digital do Cante, e tendo já alcançado os arquivos de mais de 100 grupos, não é possível ainda, naturalmente, tirar conclusões definitivas sobre o que quer que seja. Não obstante, vão-se recolhendo dados quantitativos e qualitativos, registando pistas e tendências, através da consulta da documentação existente nos arquivos e através de uma observação atenta e mais próxima dos grupos.
Paralelamente, surgem dúvidas, colocam-se hipótese e desenha-se aquilo a que se poderá chamar sugestões de melhoria, porque o objetivo principal é, e será sempre, a valorização dos grupos de cante.
Um dos dados detetados no percurso deste projeto, em curso, é a existência de muito poucos cancioneiros escritos, nos arquivos físicos dos grupos, independentemente da sua antiguidade. Tal facto poderá indicar que as modas continuam a ser transmitidas geracionalmente, mesmo dentro dos grupos, o que não deixa de ser interessante, ainda que esta prática acarrete alguns riscos, nomeadamente, o de se perderem algumas modas que vão caindo no esquecimento.
Por outro lado, um dado interessante que se verifica é o facto de existirem muitos caderninhos de apontamentos com letras de modas, algumas nunca trazidas, ainda, à ribalta, e que um ou outro componente do grupo preserva e vai anotando, entre outros rascunhos e apontamentos de vária ordem, que vão desde a receita de um bolo de café, ou um número de telefone de alguém, como nos “cadernos da Edviges”, do Grupo Feminino Terra de Catarina de Baleizão, ou nos cadernos das componentes do Grupo Coral Feminino das Ceifeiras de Pias e até mesmo no cancioneiro do Grupo Searas ao Vento da Trindade. Todos já disponibilizados on line.
Um outro aspeto relacionado com este tema prende-se com a parca discografia preservada na sede dos grupos, chegando até ao ponto de o grupo não ter em sua posse alguma da discografia gravada, produzida e editada por si próprio e em que constam, conforme já verificado, modas que nenhum componente atual do grupo se recorde na integra.
Verificando-se que existe, hoje, uma tendência para uma aparente similitude nos repertórios apresentados, em público, pelos grupos, a existência de um arquivo físico das modas poderia contribuir para apresentações e interpretações diferenciadoras de cada grupo de cante e maior observância da diversidade do cante.
Numa ou outra situação, no decorrer do trabalho do Arquivo Digital do Cante, surgem letras de modas, em folhas soltas, que não estavam organizadas e que, por isso mesmo, foram caindo no esquecimento e que já nem o diretor do grupo as conseguiu entoar. Assim aconteceu durante uma visita a um grupo, onde se encontraram seis cânticos de Natal, diferentes dos que já se conhecem. Quer isto dizer que, idealmente, todos os grupos deveriam ter a moda e respetiva pauta num arquivo físico e também digital, para que nunca se perca a letra e a melodia da mesma. Ainda que, ora por falta de vozes, ora por outra qualquer razão, não seja possível interpretá-las no presente.
Por outro lado, a existência desta documentação fisicamente e com fácil acesso permitirá relembrar rapidamente de toda a panóplia de temas já interpretados pelo grupo ao longo da sua existência. Se cada diretor fizer o exercício de consultar agora todos os apontamentos com letras do grupo, que detém, visualizar as gravações de vídeo de espetáculos antigos e até a discografia do próprio grupo, encontrará, por certo, um ou outro tema que terá caído no esquecimento.
Contudo, a importância da existência física dos cancioneiros nas sedes dos grupos não reside, apenas, na relevância arquivística e artística, mas também na relevância histórica, uma vez que a leitura atenta de cada um dos versos transporta todo um conhecimento sobre o contexto social vivido em cada localidade, em diferentes momentos, pelos nossos avoengos, permitindo a reconstrução de toda uma contextualização e memória que deve ser conhecida, salvaguardada e difundida, valorizando assim a identidade local.