Rodrigo Ramos
Morreu o Papa Francisco, uma “vox clamantis in deserto”, para pedir emprestadas as palavras de São Marcos, por temer que as minhas não estejam à altura da ocasião. Outras se têm ouvido, um pouco por todo o mundo, em unânime elogio, de Jerusalém a Jerusaquém. Isto é, bem entendido, se descontarmos uma fação muito conservadora da Igreja Católica, que considerava o Papa um estorvo à fé, por conta do seu posicionamento em questões sociais, das reformas que promoveu no seio da Igreja e da manifesta disponibilidade para encetar diálogos ecuménicos. Vai daí, um estorvo à fé! Na qualidade de ateu, não me cumpre avaliar posições de fé, mas acerca do seu estorvo creio estar habilitado para trocar duas ideias. Peço-vos a paciência e a bondade de me ouvir.
Dei pela falta da minha fé por alturas da adolescência. Ainda hoje não sou capaz de explicar se a perdi ou nunca a possuíra verdadeiramente. Eu até tomava o meu assento nas missas, participava em procissões, sobretudo, no Alentejo, onde, nas noites quentes e secas do verão, me distribuía por uma roda-viva de arraiais e romagens no concelho de Ourique. A saber: a abrir a época, as festas de Garvão, depois seguiam-se as da Aldeia de Palheiros, atingia-se o clímax com as de Ourique e, para remate, acorríamos às festas de Nossa Senhora da Cola. As noites de sexta e sábado eram de baile, que por vezes pegavam diretamente com a missa de domingo, prefaciada naturalmente por uma procissão. Romarias a que eu fazia ponto de honra em comparecer, se bem que mais disposto a pecar do que a orar. Menino de Lisboa, como me crismavam por lá, embora se contassem pelos dedos de uma mão as vezes em que pusera o pé na capital, era demasiado desengonçado para bater o pé na clareira improvisada do bailarico. O meu próprio corpo desconhecia-se de mim, as mãos bandeavam, a terminar uns braços oscilobatentes e as pernas tropeçaram em vénias inadvertidas. Se o mundo se me tivesse acabado naqueles verdes anos, estou em crer que se teria perdido um professor mediano e um pai atento, mas os bailes de Ourique não perderiam coisa alguma. Já se vê, pouco mais me restava do que me autoexcluir da dança e sentar-me nas cadeiras de suplente, em ferro frio, com as costas cravejadas de buracos, como se feitos com chumbadas de pressão de ar, que deixavam ler C.M.O., a observar derrotado as faces vermelhas das moças da aldeia, a rodopiarem alegremente nos braços tenebrosos dos rapazes rijos da terra, ao som de um acordeão que metralhava a bom metralhar. Não raro, apareciam por lá umas raparigas de fora, sempre bem-postas, muito tem-te-não-caias, movidas talvez pela curiosidade ou pelo desejo de se libertarem da canga dos pais. Essas eram as mais apetecíveis, por não terem lá na terra um qualquer pastor que soubesse atirar às perdizes e me viesse pedir satisfações. Mas isto, meu caro leitor, se não vive no Alentejo e por uma brisa circunstancial lhe vieram estas páginas de jornal cair nas mãos, permita-me que elucide. No Baixo Alentejo, pelo menos no concelho de Ourique, os bailes de verão tomavam aspetos de grandiosidade locais: estavam para a aldeia ou para a vila como as óperas de Verdi estão para o La Scala, de Milão, ou as valsas de Strauss para Viena. Pelo menos desde que nasci – quando não antes – mês sim, mês não, visitava a Aldeia de Palheiros, Garvão, Ourique, mas o resto do tempo era passado entre as margens do Tejo e do Sado! Ai de mim, que sabia eu de danças populares? De modo que envergonhado, flébil, encolhia-me todo no copo de coca-cola, e punha-me à conversa com uns tantos como eu, enquanto tirava, pelo canto do olho, as medidas a alguma pequena, com juras interiores de lhe ir descobrir o nome.
– Aquela miúda, não saio daqui sem lhe falar!
E falava! Porque em algum momento da noite, o acordeão, de língua de fora e teclas a latejar, ia repousar uns instantes para o fundo do palco e um piano ou guitarra suavíssima vinha ocupar o silêncio com uma balada. Nesse momento, para o diabo com os embaraços, era a desforra: livrava-me do copo, se ainda o tinha, limpava as mãos suadas às calças e disparava-me para junto da eleita dos meus olhos! Uma noite quente, estrelada (conto... ou não conto? Passaram-se vinte e cinco anos –conto!), uma dessas noites que os grandes escritores gostam de derramar sobre os romances, na vila de Garvão, como quem vai de Ourique em direção ao sol-posto, deliberei que acompanharia uma moça a casa, no fim do baile. Como não se negou, lá fomos os dois descendo a rua, em passos lentos, que mais querem ficar do que ir, trocando palavras esquecidas, sobre isto e aquilo; por sua imposição, ciente das alcoviteiras que, pese embora a noite alta, se plantavam atrás das janelas, em atalaia, não consentiu que nos aproximássemos; de modo que, prudentemente, levávamos bem meio metro de distância entre nós. Pois ainda assim, o que não se disse a propósito desse incidente!
Tudo isto se pagava no dia seguinte, com a tortura do sono. Caído na cama já o sol se adivinhava no horizonte, ferrava a dormir umas valentes duas horas, até a minha avó me entrar pelo quarto, pequenina, curvada, muito diligente, zelosa da salvação da minha alma, abrir as janelas de par em par e lembrar-me, afetuosa, mas perentória, que ia chegando a hora da procissão. E era toda uma urgência em me dar o leite com o café da manhã, umas popias brancas que nunca faltavam na mesa, quase convencida de que o senhor prior, já de batina, em dando pela minha falta, tiraria o cabeção e se recusaria a principiar o rito. Mais: o que diriam as vizinhas, em me sabendo na aldeia e não me vendo curvar a cabeça diante da cruz? Sabes a oração, filho? Agarra no terço, assim, olha, assim, vês?
– Vejo, querida avó, vejo! Recordo-me de si, nesses e noutros episódios, com tal clareza que é como se a sua imagem me tivesse sido cravejada na memória a marreta e escopro.
Tinha 14 anos! Não sabia latim, não tinha lido ainda as Confissões de Santo Agostinho, nem O Ente e a Essência, de São Tomás de Aquino, obras determinantes para atirar comigo para fora do credo. Com 14 anos, eu ainda não duvidava de Deus, mas já então me repelia toda aquela teatralidade da missa, a autoridade encenada do sacerdote, que pregava um Cristo pobre, enquanto orgulhosamente expunha a sotaina imaculada, os sapatos de verniz, a estola bordada a ouro, a eloquência do argumento.
Aos 16 anos, apostado em que a minha autoridade valia mais sobre mim do que o Santo Ofício, todos os cardeais e a Santíssima Trindade juntos, ao sentir a minha avó romper pelo quarto, pedi-lhe que me guardasse o leite no frigorífico, deixasse a janela e, dando meia volta na cama, puxei os lençóis. Acabara-se.
Depois disso, li Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São Paulo e muitos outros. Folheei o Antigo e o Novo Testamento, visito com regularidade os evangelhos, incluindo (direi, sobretudo?) os apócrifos. Ateu, vou à missa, de quando em vez, ouvir as escrituras e a homilia do pároco (se é jesuíta, temo-la boa!). Em casamentos ou batizados aconteceu pedirem-me que lesse um ou outro salmo e anui. Aceito sempre, desde que não se aborreçam por não me benzer a caminho ou à saída do ambão. É verdade que, ao contrário do que se ouve, estou convencido de que Deus foi criado pelos homens, feito à nossa imagem e semelhança, mas não pretendo cair em proselitismo. Para mim, a religião é mais importante do que Deus. Nasceu da palavra (“In principio erat Verbum”, lê-se no evangelho de João), fundou-se no texto, testemunho indelével do exemplo, na vida e na morte.
A modos que, quando vejo este Francisco amortalhado num banal caixão de madeira não consigo deixar de me perguntar, num mundo de párocos que se ostentam como marqueses e papas se submetem à humildade de Cristo, qual dos dois melhor serve a religião e quem estorva efetivamente a fé.