Diário do Alentejo

O mundo nos versos de um ativista popular

25 de março 2025 - 08:00

Texto João Carvalho

 

Nem sempre um homem criativo se debruça sobre as causas sensíveis do mundo. Nem sempre um poeta sente necessidade de gritar de forma interventiva através dos seus versos. Ainda assim, há um homem criativo que é poeta e se senta, augurando uma paz exterior que se distancia da sua inquietação interior, numa paragem de autocarros. Diz-se “ativista freelancer” e a sua forma de raciocinar dispõe-se em versos. Chama-se Paulo Rosário.

Não se prepara para apanhar nenhuma das urbanas que percorre a cidade de Beja, mas é numa dessas paragens de autocarros que, sentado com os pés afastados, o tronco retesado para a frente e os cotovelos bem firmes sobre as pernas, Paulo Rosário medita em rimas. Parece evocar a vida que viveu, mas garante ter os sentidos a acompanhar a atualidade. E se há coisas que pouco ou nada mudam, o fenómeno da humanidade pode ser exemplo disso: “Se pesarmos numa balança o bem e o mal, o mal ganha quase sempre, é isso que a gente tem de mudar”, constata Paulo Rosário, enquanto ajeita o longo e brilhante cabelo atrás das orelhas e arrasta lentamente uma das botas castanhas sobre a superfície de uma enegrecida e gasta calçada portuguesa.

Com 63 anos de idade e envolvido na escrita de poesia popular desde 1982, Paul Alent – pseudónimo de Paulo Rosário – considera-se, entre risos, um “ativista freelancer”, “se é que isso existe”, mas desvia as atenções de si e refere que a mensagem implícita na poesia que escreve é o mais importante. Apesar de obter prazer através da escrita e dos versos poéticos lhe surgirem espontaneamente, Paulo não escreve sobre a leveza dos ânimos, e considera a sua poesia interventiva. “Preocupo-me com a crise ambiental, com as guerras, com o rumo da humanidade. Tenho um foco”, diz num sorriso tímido e observador, antes de acrescentar num sobressalto: “Assim, na brincadeira, digo que a Greta é minha neta!”. Apelida o planeta onde vive de “bola” e, numa breve viagem mental, faz alusão ao globo terrestre que tem pousado na secretária onde escreve os seus poemas. Muitas vezes envolvido numa consonância que mistura olhares sonhadores (para esse mesmo globo) e uma atmosfera musicada a seu gosto, este poeta popular gravita entre pensamentos versados, numa tentativa de encontrar forma de melhorar o mundo e o seu destino: “O planeta é como se fosse uma casa, não é ilimitado”.

Mas é quando alude ao seu planeta de secretária que Paulo recorda os tempos que viveu fora da sua cidade de Beja: “Vivi 10 anos em Lisboa e 10 anos em Madrid”. Acompanhou, então muito novo (tinha 13 anos), a mudança da família para Lisboa e foi na capital portuguesa que começou a trabalhar no mundo da vigilância e a encontrar os primeiros amores. Mas quando lhe surgiu a oportunidade, por vias de ter um irmão em Madrid, de mudar-se para a capital espanhola, Paulo não hesitou em aventurar-se. Depois de 10 anos em Lisboa, e numa espécie de busca pelo sonho americano em terras do velho continente, mudou-se com a sua companheira da altura para Madrid. “Trabalhava à noite em bares e ganhava bem”, afiança Paulo Rosário, ao mesmo tempo que dista num olhar que parece colapsar e confundir num sonho o Museu Regional de Beja com as ruas centrais de Madrid. “Foi uma loucura e os últimos tempos lá foram difíceis, tanto que tive de regressar a Beja para me curar”, sentencia o tema sem grandes demoras, depois de enumerar algumas das dificuldades por que passou depois de ver-se revolvido numa espiral de substâncias ilícitas. Absorvido pela sua vitória no processo de desintoxicação, Paulo rapidamente volta a ver nitidamente o Museu Regional de Beja, deixando para trás o sonho confuso que foi a vida na capital espanhola. É depois de observar o seu progresso pessoal que Paulo volta à poesia e às suas preocupações relativas à evolução da humanidade: “O meu grande foco é sermos melhor raça”.

O sotaque alentejano faz-se notar neste poeta popular que teve como “guru” António Aleixo, esse grande nome da poesia portuguesa que faleceu no ano de 1949, altura em que o Estado Novo ainda vigorava em Portugal. A política também é tema importante na poesia de Paul Alent, pois é através da política que se governam os homens e o mundo. Preocupado com a ascensão atual da extrema-direita, o homem poeta cai diante dos seus animados esforços para construir um mundo melhor e deixa entrever, nas suas rijas faces emolduradas por uma barba hirsuta que sinaliza já uma longa vida, alguma descrença em relação ao futuro. E é diante dessa descrença que enche o peito de ar e, a meio de frenéticos gestos com a mão direita, declama convictamente uma estrofe de um dos seus poemas políticos: “Nasci no meio dos cifrões/ É o mundo dos negócios/ Todos sérios e ladrões/ Lá no fundo, todos sócios”.

“Se toda a gente lesse e se instruísse, o mundo melhorava, mas tudo depende da qualidade do que se lê”, diz num balbucio de pouca esperança, para logo recobrar o ânimo e o sentido de humor: “O grande problema para a gente é a gente!”.

Poucos transeuntes passam numa paragem de urbana situada a meio de uma cidade de Beja deserta pelo domingo à tarde, mas os poucos que passam são vislumbrados pelo olhar criativo deste homem de versos. E alguns são conhecidos. Há um que se dirige a Paul Alent e o cumprimenta com uma graça que navega em mares de aparente mútua confiança entre dois velhos conhecidos: “Ali os moços perguntaram se aquele além é o Vasco da Gama”. Paulo sorri primeiro, como que a preparar uma resposta à altura, e ri-se depois: “Não sou não, este Vasco da Gama ainda não descobriu o caminho dele, quanto mais para a Índia”. Ambos os homens soltam gargalhadas. A meio do gargalhar, Paulo contorce-se como que não esquecendo as suas preocupações em relação ao mundo, mas este último, o mundo, não abana depois de tais contorções. Um homem só, por muito que esperneie de revolta, por muito que queira consertar os flagelos da humanidade, nada pode. É tal a impotência de um homem. Mas Paulo prossegue firme nas suas esperanças e convicções: “Rejo-me pela lógica e pela racionalidade”, e continua descrevendo o sentimento de escrever: “Isto para mim é uma curte”. Há um ajeitar de tronco que reposiciona Paulo no banco duro de uma paragem onde velhos e novos apanham a urbana. Há um silêncio como que para ouvir o deserto das ruas bejenses. Uma árvore chocalha as poucas folhas de janeiro ao ritmo de um vento lento. No muito tempo que Paulo fica sentado na paragem, os transeuntes são poucos, talvez por ser domingo. E autocarro ainda não passou nenhum, talvez também por ser domingo. Felizmente, a poesia não tem cá dias de descanso. Felizmente, ainda há a poesia. E há quem se sirva dela para gritar!

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