O propósito maior do Arquivo Digital do Cante assenta na salvaguarda e valorização dos arquivos dos grupos de cante, para que a história dos mesmos possa ser (re)contada da forma mais fidedigna possível. A digitalização desta documentação e a partilha pública da mesma traz assim novas fontes a quem o estuda e investiga, permitindo novas abordagens, novos estudos e uma maior clareza sobre o processo evolutivo dos grupos e, consequentemente, do cante alentejano. Antes que se queimem ou extraviem mais papéis, para além de todos os que já se perderam.
No desenvolvimento desta tarefa, os investigadores que a cumprem deparam-se, não raras vezes, com documentos que transportam o pensamento para outras épocas vividas ou idealizadas pelos mesmos, dada a antiguidade de alguns manuscritos. Espoletam essas viagens no tempo – com o manuseamento cuidado dos papéis manuscritos, cartas, ofícios e tantos outros documentos guardados, de inestimável valor – aquando não havia fotocopiadoras e que, para se fazer cópia de uma carta para arquivo, se tinha de recorrer a um papel químico entre duas, finas, folhas de papel. Não havia faxes e muito menos computadores ou Internet e já nem se fala em email ou telemóveis. Mas havia telegramas, recados anotados em pequenos papéis, onde, por vezes, se registavam os impulsos gastos num telefonema, cartas de pesar com envelope debruado a preto, e, depois, telefax, fax e tudo o que se lhes seguiu e cada vez mais velozmente. Qualquer tarefa diária de um grupo exigia, naquele tempo, uma maior disponibilidade para a executar, mas fazia-se na mesma!
Recuando a esse tempo, não será difícil supor o grau de dificuldade inerente à organização de uma viagem internacional. E elas aconteceram. Tornando possível o impensável, tirar ao campo e às searas alguns homens para os levar a cantar as modas do dia a dia e outras, porém, nos maiores palcos do mundo.
Sendo incomum esta prática cultural, estando delimitada no território, presente, sobretudo, no Baixo Alentejo, a partir do momento em que surge na capital, desde cedo suscitou interesse pelas gentes da cultura do nosso país e não só. Assim sucedeu em 1932, aquando da participação do Rancho Coral de Serpa no Festival de Dança e Música Popular no Casino do Estoril que, de imediato, despertou o interesse de Rodney Gallop, musicólogo e etnólogo de renome mundial. Diplomata também.
Já sob alçada da casa do povo e com o nome de Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, este mesmo grupo vê-se a braços com o enorme desafio de participar no 18.º Llangollen International Musical Eisteddfod, de 7 a 12 de julho de 1964. Mas com muito empenho e dedicação na preparação desta viagem, a julgar pela documentação existente, e apesar do atraso tecnológico em que se vivia, foi possível ultrapassar todas as dificuldades e viajar até ao País de Gales. No ano seguinte, novo convite para Londres e depois para o Brasil, sucedendo-se até à atualidade.
Também do concelho de Serpa, e pouco depois do 25 de Abril de 1974, coube ao Grupo Coral de Aldeia Nova de São Bento viajar até à América em 1976. Dez homens, que em tempo algum sonhariam em viajar para 5000 quilómetros longe de casa e receber 10 dólares ao dia para cantar, lá foram participar no Festival of Americam Folklife, no âmbito do bicentenário da independência dos Estados Unidos da América.
Bento Brito Coelho, Bento Charraz Calvinho, José Lopes Carrilho, Manuel de Mira Monge, Manuel Varela, Silvestre Charraz Morais, Manuel Valadas, José Rosa, José Mata-Seta e José Francisco Serrano integraram, então, a comitiva organizada por Fernando Lopes Graça, que incluía também os Pauliteiros de Miranda, de Duas Igrejas, para ir até à América, durante 24 dias. Tendo atuado para milhares de pessoas em diferentes estados, nomeadamente, Washington, Nova Iorque, Illinois, Pensilvânia, Rhode Island e Massachusetts¹.
Um pouco mais tarde, e num período em que mais grupos terão já viajado pelo mundo, regista-se também a deslocação do Rancho Coral Os Camponeses de Vale Vargo a Marly, França, em 1987.
Certamente se encontrará mais documentação relativamente a deslocações dos grupos ao estrangeiro, porém, este é um trabalho ainda em curso, e o que importa salientar é que, efetivamente, desde cedo o cante tem esta capacidade e categoria para se apresentar nos maiores palcos do mundo como expressão cultural viva e identitária de um povo. E também assim se valoriza, difundindo lá fora. Assim houvesse outro tipo de apoios!
Florêncio CaceteCoordenador do Arquivo Digital do CanteCIDEHUS/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
¹Serrano, J. (2016). “Era uma vez na América”. “Diário do Alentejo”.