Na crónica anterior abordou-se a participação feminina nos grupos corais mistos. Facto registado em documentação vária, existente nos arquivos dos grupos que já foram consultados no âmbito do projeto em curso de implementação do Arquivo Digital do Cante. Até ao momento está documentada a existência de grupos corais mistos em Vila Verde de Ficalho, Santo Aleixo da Restauração, Serpa e na diáspora (Lisboa). Todos cronologicamente situados nas décadas de 40 e 50 do século XX. Para além destes, estão referenciados outros, dos quais ainda não se obteve prova documental, para além dos grupos femininos constituídos após a Revolução de Abril e dos quais se tem conhecimento.
Não obstante a reduzida participação feminina nos grupos de cante, verificada desde a invenção e constituição dos primeiros grupos formais, no primeiro quartel do século XX, esta nova roupagem para apresentar o cante contrastava com a realidade existente em que, até então, a prática informal do cante era regular e conjunta¹. Com o passar do tempo, e ainda que no início do movimento tenha existido tal participação feminina, pontual e muito localizada, em grupos mistos, essa participação viria a diluir-se cada vez mais através de vários mecanismos do Estado Novo. À medida que este, paulatinamente, ia conseguindo deter o controlo da atividade dos vários grupos sociais, através das casas do povo, espaço privilegiado para a formatação dos grupos corais alentejanos, como representações locais e regionais da nação², alimentando, assim, o estereotipo de que o cante “verdadeiro” era exclusivamente cantado por homens, cerrados em fileiras e aos quais se viria também a instituir o uso de traje regional.
Ainda assim, as mulheres continuaram cantando de forma informal, em várias tarefas do quotidiano, em atos religiosos, em casa, em festas locais, onde, irreverentemente, desfiavam despiques, entre si e com homens. Cantavam na ida e/ou na vinda para o trabalho e durante o mesmo, por vezes. “A pessoa ia para a monda ou trabalhava um dia inteiro. Vinha de lá, vinha cantando. Até retenia…”, recorda Ana Fernandes, do Grupo Coral As Camponesas de Castro Verde, em 2014, numa reportagem da “SIC”.Após o 25 de Abril de 1974, assistiu-se a um boom no que toca à participação dos cidadãos. Um pouco por todo o lado se criaram associações de vário género e com variados objetivos. O cante não terá saído imune a esta avalanche de participação popular, a esta grande transformação social, como não o foi perante outras. Por toda a parte se criaram grupos de cante, muitos deles ligados às unidades coletivas de produção (UCP) agrícolas também, mas não só.
Esta vontade de participar, de fazer coisas que, até então, ou eram socialmente condenadas ou proibidas, estende-se naturalmente também às mulheres. É nesse contexto de grandes movimentos sociais e culturais que surge o primeiro grupo coral feminino, em 1979³, o Grupo Coral Feminino “Flores da Primavera” de Ervidel (Aljustrel).
Para estas mulheres e outras que se lhes seguiram, participar num grupo coral feminino, foi um ato libertário. Foi uma revolução dentro de outra revolução. Foi uma luta! Foi uma labuta! Dizem algumas, referindo-se ao vencer o preconceito de pais e maridos que cresceram numa sociedade que arredava a mulher da participação associativa e a quem se exigia que só cuidasse da casa e da família, do marido e dos filhos.
De um momento para o outro, estes homens viram as mulheres a sair de casa para ir aos ensaios, para participar em reuniões e atuações fora da sua terra. Não terá sido um processo fácil, porém, as mulheres conquistaram mais esse direito, derrubando o preconceito, para além de todos os outros advindos do 25 de Abril de 1974.
Na década de 80 do século passado surgem grupos femininos em várias localidades. Também na diáspora. Em Castro Verde, o Grupo das Camponesas alcançou um sucesso tremendo, comprovado pela vária documentação já consultada e tratada pelo Arquivo Digital do Cante. Talvez tenha sido o grupo de cante feminino mais requisitado para espetáculos. Dentro e fora do País. Para os mais diversos tipos de evento. De festivais de folclore a encontros de cante e até participações para a televisão e rádio. Depois seguir-se-iam outros, cada um deles trazendo algo novo ao cante. Paralelamente, surgem novos grupos corais mistos, ainda que em menor número.
Graças a esta participação alargada das mulheres no cante, fruto de um processo de democratização cultural, foi possível também não se perderem modas do cancioneiro popular religioso, modas de trabalho que corriam o risco de se perder, modas de roda e dos balhos dos mastros, mas também novas modas, fruto da criatividade feminina, escritas por novas autoras, que guardavam os versos na memória ou em caderninhos de notas.
Vencendo todas as barreiras e preconceitos, os grupos de cante feminino resistem ao lado dos grupos masculinos e só o luto cala(va) a voz destas mulheres.
Florêncio CaceteCoordenador do Arquivo Digital do CanteCIDEHUS/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
¹ Cabeça, S. M. (2016). Grupos Corais Femininos: Desafios Passados e Futuros do Cante em Grupo. (M.-M. D. Mulheres, Ed.) O Cante no Feminino. As Vozes das Mulheres no Património Cultural Imaterial.
² Simões, D. (2016). O Cante na Raia do Baixo-Alentejo: Experiências e Expectativas. (M. (. Mulheres), Ed.) O Cante no Feminino. As Vozes das Mulheres no Património Cultural Imaterial.
³ Santos, J.R. & Cabeça, S. M. (2010). As Mulheres no Cante Alentejano. Proceedings of the International Conference in Oral Tradition, Concello de Ourense, (pp. 31-38). Ourense.