Diário do Alentejo

Linda Pepe: “O nosso Alentejo, na sua serena intensidade, enche-me de histórias por contar”

25 de fevereiro 2025 - 08:00
Foto | D.R.Foto | D.R.

Texto | Luís Miguel Ricardo

 

Tem 44 anos, nasceu em Paris, mas é filha de emigrantes com raízes na pitoresca aldeia de Vale de Vargo, situada no concelho de Serpa. Desde tenra idade que a vontade de ser professora começou a germinar. Primeiro com o estatuto de sonho, mas, com o passar dos anos, como hipótese cada vez mais viável. Em 2006 terminou a licenciatura em Ensino Básico, na variante de Português e Francês. E em 2020, já com o sonho feito profissão, agregou ao seu currículo académico uma especialização na área da Educação Especial, no Domínio Cognitivo e Motor.

Refere: “É com particular alegria e gratidão que dou comigo a ser brindada com as designações de ‘professora linda’ ou ainda ‘professora dos afetos’, cognomes em que me revejo porque, de facto, só concebo o ensino como uma forma de amor. Só ensina quem ama o que faz, e por isso acredito que deixo em cada aluno um pouco de mim e, inevitavelmente, ficará sempre um pouco de cada um deles comigo. Cada conquista deles é uma vitória nossa. Para os meus alunos o céu é o limite, e gosto de pensar em mim como parte do chão firme onde eles se apoiam para alcançar os sonhos mais incríveis”.Declara-se apaixonada pelo ensino, mas também se declara apaixonada pelas palavras escritas e pelas palavras contadas. É professora, é contadora de histórias e é escritora, tendo publicado, em 2024, a sua primeira obra, O Duarte e as Vogais.

Eis Linda Pepe na primeira pessoa!

 

Quando e como foi descoberta a afinidade com a escrita?

O gosto pela escrita antecede a memória. Guardo a doce lembrança das histórias que o meu pai me lia para adormecer. No ensino primário adorava a literatura francesa. Recordo-me de ler as Fábulas de la Fontaine e de nas aulas escrevermos e declamarmos poesia. Gradualmente, à medida que fui despertando para as minhas origens alentejanas, fui, de facto, encontrando o meu lugar, a minha voz. Os primórdios franceses permitiram-me desenvolver o gosto ecléctico que faz parte de mim, mas a gradual descoberta do Alentejo e a sua cultura encheram o meu coração. Estas paisagens, gentes e cultura incutiram em mim um gosto redobrado pela arte escrita. O nosso Alentejo, na sua serena intensidade, enche-me de histórias por contar, que me compele a cristalizar no papel.

 

 E, para além do Alentejo, que outras fontes de inspiração para a escrita?

A inspiração para a escrita vem da ansiedade de me expressar e interpretar tudo o que me rodeia. Fico fascinada com a riqueza que o Alentejo me proporcionou e proporciona. Mas fico também fascinada com o privilégio de trabalhar com crianças e disfrutar da sua espontânea autenticidade, o que me enche de ideias e de novas perspetivas que enriquecem a minha inspiração.

 E como surge a Linda “contadora de histórias”?

Desde que me conheço que gosto de comunicar, contar histórias e interpretar personagens, pois fascina-me a forma como isso influencia as pessoas. Integrei um projeto como “contadora de histórias” no pré-escolar, numa oportunidade proporcionada pela Câmara Municipal de Serpa, onde acredito que, semanalmente, deliciei e proporcionei alegria a dezenas de crianças. Hoje, muitas dessas crianças são adultos, e enche-me o coração sentir o carinho que me dirigem sempre que os encontro. É indescritível o sentimento de concretização por perceber que, de alguma forma, ajudei-as no desabrochar dos adultos de hoje, e isso só me dá mais vontade de continuar a contar histórias e dar a conhecer todas as possibilidades que se avizinham para os adultos de amanhã. Contar histórias é ilusão e magia, mas também é manter o passado vivo, e o insondável futuro aliciante. É a mais pura forma de propagar conhecimento imemorial, mas também uma ponte para um futuro auspicioso.

  Mais alguma expressão artística experimentada para além da literatura e do contar histórias?

A música é outra forma de comunicação que sempre me fascinou. De referir que na escrita comecei por me apaixonar pela poesia, e só depois pela prosa, precisamente, por sentir que existe uma musicalidade nas palavras. E sobre a música, considero-a outra forma de poesia. Aliás, no meu dia a dia, a música é uma constante, que está muito presente também na minha forma de lecionar.

 

Para além da escrita, a arte de ensinar e a arte de ensinar com paixão e inovação também fazem parte do seu quotidiano. Metodologia EKUI: que prática pedagógica é esta?

Neste ano estou a utilizar, pela primeira vez, a metodologia EKUI. Foi-me atribuída uma turma de 1.º ano, com 24 alunos. A EKUI é uma metodologia multissensorial inclusiva, que combina quatro formas de comunicação: a gráfica, o código Braille, a língua gestual portuguesa e o alfabeto fonético. Se me perguntassem há uns meses se acharia que crianças de seis anos tinham capacidade para aprender uma metodologia destas? Não acreditava, mas por isso mesmo resolvi pôr em prática. E as vantagens superaram muito as minhas melhores expectativas. É excecionalmente gratificante ver a facilidade com que as crianças aprendem a língua gestual, e surpreendente a forma como esta pode acelerar a apreensão de conhecimentos. Nesse sentido, todos os dias aprendemos duas palavras escolhidas por eles em língua gestual portuguesa. A EKUI incentiva a empatia, a colaboração e o respeito. Esta metodologia respeita o ritmo de cada criança, integrando diferentes áreas do conhecimento de forma significativa e contextualizada. A EKUI permite um acesso equitativo ao ensino e à comunicação, possibilitando que cada criança possa aprender e expressar-se na sua plenitude.

 

Voltando à literatura. O Duarte e as Vogais: que livro é este?

O Duarte e as Vogais é um livro dirigido para o público infantojuvenil, que tem como principal objetivo ensinar as vogais de uma forma criativa, incentivando a reconhecê-las e a usá-las corretamente nas palavras. O Duarte tem uma relação especial com as vogais. Trata-se de uma narrativa lúdica e divertida que explora a aprendizagens das letras e dos seus sons. Ao longo da história, as vogais ganham vida, o que torna o processo de aprendizagem mais dinâmico e muito atrativo para os pequenos leitores. Acredito que aprender pode ser divertido, e a diversão pode ser construtiva.

 

Que papel desempenha o Alentejo na escrita de Linda Pepe?

O Alentejo está impregnado em tudo o que eu sou, digo e faço! As suas paisagens, as suas gentes e o seu ritmo norteiam toda a minha criatividade. Há uma magia nas planícies banhadas pelo sol, no trato familiar das comunidades e na cadência calma e assertiva do quotidiano. Sinto que o Alentejo tem muitas histórias ainda por contar e que estas se vão dando a conhecer em cada gesto dos alentejanos, em cada sobreiro que reina sobre a tórrida planície, em cada tordo que recorta o céu com o seu voo desigual, em cada nota sentida de cante alentejano. Sinto que é minha responsabilidade estar atenta aos vislumbres de história que o meu Alentejo me proporciona.

 Qual a opinião sobre o universo da escrita em Portugal e no Alentejo?

Com as novas tecnologias está cada vez mais fácil propagar a criação artística. O desafio está na sua edição e promoção. A minha experiência com a editora “Cordel de Prata” não foi a mais favorável. Não pude deixar de sentir que o negócio da literatura, de alguma forma, se sobrepõe ao valor da arte. Infelizmente, o valor das obras para as editoras está no número de livros vendidos e não existe um verdadeiro apreço pelo valor intrínseco das obras. Existe uma “linha de montagem” de novos livros, que não premeia os escritores mais talentosos e com voz mais autêntica. Por isso mesmo torna-se ainda mais importante que os escritores portugueses e, em particular, os alentejanos, não se deixem condicionar por alguma adversidade e que materializem a sua visão.

 

E o acordo ortográfico. Qual o posicionamento face à polémica?Entendo a língua como ser vivo, que cresce e se desenvolve de forma orgânica. Promover a sua alteração por decreto é, no meu entendimento, contranatura e, de alguma forma, desrespeita os séculos de evolução natural que nos antecedem. A nação portuguesa é acima de tudo a sua língua. Jamais deverão ser critérios políticos ou económicos a condicionar a sua evolução, só o seu uso pelas nossas gentes é que deveria continuar a moldar o português do futuro. Apesar de me ver forçada a lecionar com o novo acordo ortográfico, estou em profundo desacordo, desde logo porque constato que convida a um certo facilitismo pernicioso, mas que, acima de tudo, desrespeita os nossos séculos de tradição.

Que sonhos literários moram em Linda Pepe?Ambiciono dar seguimento à minha jornada literária, com novos livros que continuem a instruir e a divertir as novas gerações. Sinto que tenho muito para partilhar. Pretendo ainda continuar a desenvolver as minhas qualidades como contadora de histórias e ter, cada vez mais, a oportunidade de interagir com grupos de crianças de todo o País.

E o que está na “manga”?Já tenho outra obra escrita para os mais pequenos, dentro do mesmo estilo. A médio prazo, mantenho a ambição de me aventurar na literatura para adultos. Entretanto, como já expliquei, pretendo sedimentar-me como contadora de histórias, porque esse contacto pessoal é uma dimensão que também adoro e que pode ser determinante para, nos mais jovens, despertar o importante gosto pela leitura. Porque sou alguém que respeita o passado, mas empolgada com o futuro, pretendo aproveitar todos os canais de comunicação para o meu público. Assim, vou brevemente iniciar um canal de Youtube dedicado a histórias infantis. Vejo esta ferramenta como um meio excelente para chegar de forma mais abrangente e apelativa aos jovens e, para além disso, preocupa-me que esse espaço esteja a ser ocupado, com naturalidade, por youtubers que comunicam em português do Brasil, algo que não é ideal para as crianças portuguesas. Por conseguinte, ambiciono oferecer uma alternativa nesse segmento.

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