A primeira cantiga que todo o individuo escuta, logo após a nascença e enquanto criança de colo, vem de uma voz feminina. Regra geral, de uma mãe ou de uma avó. No tempo dos nossos avoengos essa primeira cantiga podia assumir várias formas: uma cantiga de embalar, uma benzedura, como a do luar, uma oração a Santa Bárbara, em noite de trovoada, um cante ao menino à chaminé, pelo Natal. Mais tarde, no trabalho do campo, onde se enregava cedo, no caminho percorrido a pé, na catequese, na missa, e até na escola, as cantigas continuariam a chegar pela voz de outras mulheres. Nos ranchos de ceifeiras houve sempre mulheres cantando, ao despique muitas vezes, e eram também elas que davam voz a tantos bailhos de roda, por altura dos mastros no mês de São João. Só o luto calava e cala, de forma permanente, a voz que canta da mulher.
A mulher, à exceção do contexto do trabalho rural, permanecia maioritariamente no espaço casa, cuidando e gerindo os filhos, a sua educação e a família, pelo que essas responsabilidades a afastavam dos espaços de sociabilidade dos homens, impedindo a sua participação no cante espontâneo das arruadas e tabernas, onde a presença da mulher estava fortemente condicionada por códigos culturais de honra. Pelo que a mulher praticava o cante, executando-o maioritariamente em casa, sozinha em homofonia ou excecionalmente em polifonia, nas festas familiares (casamentos e batizados), onde acompanhava a família e os vizinhos próximos. Também nas festas religiosas da localidade¹.
No desenvolvimento do trabalho do Arquivo Digital do Cante, por entre os arquivos dos grupos, existem referências a grupos de cante compostos por homens e mulheres (mistos). Em 30 de novembro de 1940, apresenta-se, na Casa do Alentejo, o Rancho Misto de Cantadores de Vila Verde de Ficalho, cuja foto seria publicada numa separata do “Diário do Alentejo” em 1941, em testemunho de alto apreço, reconhecimento e admiração pelo excelentíssimo senhor professor Armando Leça, que proferiu a conferência, na referida data. Em 1952, apresentou-se no Concurso de Cantares Alentejanos, organizado pela Casa do Alentejo, no Pavilhão dos Desportos em Lisboa, o Rancho Misto de Santo Aleixo da Restauração, composto por 18 homens e sete mulheres: Mariana Gonçalves, Ana Jorge, Catarina Assunção, Ana Godinho Mira, Maria da Conceição Vaz, Maria Albertina Rijo e Maria Teresa Rodrigues, jovens que o mestre Francisco de Almeida Candeias integrou, trajadas de ceifeiras especialmente para o concurso (Rodrigues, 2016). Também em 1965 é anunciada a participação do Grupo Coral da Casa do Alentejo “Engenheiro Martins Galvão” (misto) na III Festa (concurso) de Cantares Alentejanos. Não são por isso novidade os grupos de cante alentejano mistos. Do período entre 1930 e 1970 existem também registos fotográficos de outros grupos com a participação feminina, que se encontram em análise por forma a perceber se a mesma foi pontual ou se seria regular.
Na década de 1950 assistiu-se a uma relação de dominação dos representantes da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) junto das casas do povo no controlo dos seus elementos², dando continuidade a uma estratégia ofensiva à atividade das tabernas iniciada em 1940, com a publicação do decreto-lei n.º 30.710 de 29 de agosto que previa a proibição e limitação da atividade das tabernas localizadas na proximidade das casas do povo, bem como a proibição e instalação de estabelecimentos de vinho a copo num raio de 100 metros. Isto porque, para o Estado Novo, o cante espontâneo foi associado a uma cultura boémia de taberna, incompatível, aos olhos do regime, com os ritmos de trabalho e o conceito de família instituído (Rodrigues, 2016). É com base nestas e outras ações previstas nos regulamentos da FNAT que o Grupo Coral de Santo Aleixo da Restauração (então misto) – cuja fundação remonta a março de 1934 e que desde essa altura se reunia ao domingo, paraMconviver e cantar livremente no monte do Pé-Descalço –, é agregado à casa do povo em 3 de maio de 1957. De forma a ser institucionalizado e, assim, mais facilmente controlado, indo ao encontro da instrumentalização nacionalista da prática (Simões, 2024). Terá sido na sequência desta estratégia que os poucos grupos corais mistos existentes deixaram de o ser, passando a ser apenas constituídos por homens. Voltam novamente a existir grupos de cante mistos após o 25 de Abril de 1974, assim como surgem os grupos femininos. E entre 2019 e 2022 conclui-se que, dos 112 grupos existentes no território Alentejo, 20 por cento têm uma composição mista (Cacete, 2022). Após este levantamento, o Grupo Coral dos Trabalhadores de Montoito fez saber que cessou atividade no ano de 2024, sendo que o grupo tentou nos últimos anos, a todo o custo, manter o grupo tendo para isso incluído mulheres na sua formação. Não tendo ainda dados que permitam dizer que esta é uma prática regular dos grupos, utilizada para combater a escassez de componentes, é evidente que esta é uma tendência da atualidade, que perdura algum tempo até ao último suspiro. Porém, os grupos de cante mistos retratam uma realidade social, de um determinado período histórico e social, e são representativos das vivências desse quotidiano de antanho, pelo que não devem ser olhados como grupos menores ou estranhos à história do cante e à sua evolução. Sendo que existem grupos de cante mistos que o são por decisão dos seus componentes e não porque estejam em risco de fechar portas.
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
1 Rodrigues, D. (2016). Cante alentejano: entre o quotidiano e a patrimonialização de uma prática cultural.(O caso de Santo Aleixo da Restauração). Dissertação de Mestrado, Universidade de Évora.² Simões, D. (Dezmbro de 2024). “O Canto Polifónico Alentejano: entre o passado e o futuro”. (C. M. Moura, Ed.) revista “LACANT”(6).