Texto | Luís Miguel Ricardo
Nasceu em Lisboa, em 1960. É encenadora, dramaturga, performer e pedagoga, com forte atividade nas áreas da expressão e da criatividade. Rebobinando a fita da vida e da obra e fixando-a no começo. E o começo, o despertar, acontece por terras estrangeiras. Os avós paternos residiam em Madrid, e esta cidade espanhola é eleita como “porto de abrigo” para as “férias grandes”. Um porto de abrigo que há de servir de porto de partida para várias incursões por terras de Espanha, país de onde era natural a avó paterna, e por terras de França, território de origem do avô paterno. Vivências que, desde tenra idade, lhe incutem o interesse pela literatura, pelo teatro, pelas artes e pela natureza. Vivências que, aos 11 anos, a fazem apaixonar-se pelo Cancionero Gitano, de Lorca, livrinho que compra e que a há de acompanhar ao longo do seu percurso artístico. Vivências que lhe permitem tomar consciência das limitações de Portugal em termos de diversidade artística e de acesso a bens culturais. Vivências que lhe permitem, desde criança, sentir-se uma criativa empreendedora, concebendo pequenas performances, em casa, com as suas irmãs, e escrevendo pequenos contos ou relatos de viagens. Vivências que a empurram para um percurso académico ligado ao universo artístico, tendo a sua formação conhecido vários momentos: o Conservatório de Música de Lisboa, como clarinetista; a formação académica na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, no ramo Atores- -Encenadores; a participação no master em Criatividade, na Universidade de Santiago de Compostela, onde virá a ser convidada para ministrar aulas na sua área de especialização, a Criação Dramática; a realização da componente curricular do doutoramento em Artes Performativas e Imagens em Movimento, pela Universidade de Lisboa; a fase de bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, para o curso de Teatro; a distinção com o “Prémio Jovens Criadores”, do Centro Nacional de Cultura, em 1992, para investigação sobre o Teatro dos Jesuítas no século XVII; a etapa como bolseira da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, para escrita da obra de teatro musical “Skarin”, em 2017.O início da sua atividade teatral e musical acontece em Lisboa, tendo trabalhado com João Brites (O Bando), José Valentim Lemos (Os Saltitões), Jorge Listopad (Teatro da Universidade Técnica), Carlos Avilez (Teatro Experimental de Cascais), João Lourenço (Teatro Aberto), Mário Feliciano e Luís Miguel Cintra (Teatro Nacional de São Carlos). Mais tarde há de trabalhar também com Luís Castro (Karnart).Com O Bando e Os Saltitões conheceu, em digressões de agitação cultural nos dinâmicos anos que se sucederam ao 25 de Abril de 1974, um país profundamente rural, mas com fortes raízes de culturas próprias – sobretudo as que encontrou em Trás-os-Montes e no Alentejo, regiões pelas quais sentiu uma imediata atração. Uma atração que haveria de tornar-se crucial para, mais tarde, escolher a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e aventurar-se num curso de Engenharia Florestal, que acabou por abandonar; e o Alentejo para residir e iniciar um projeto artístico e profissional, formando a Companhia de Teatro Arte Pública, da qual é diretora artística. Por terras do Sul começa por conciliar o percurso artístico com a atividade docente, ministrando, na Escola Superior de Educação de Beja, entre 1991 e 2003, as disciplinas de teatro na educação, teatro musical, movimento e drama, didática e prática pedagógica, integradas em cursos de formação inicial, contínua e complementar de professores. Ainda nesta instituição, coordena, em parceria com a Arte Pública e a Universidade de Santiago de Compostela, os três “Encontros Internacionais de Criatividade” aplicados às artes, educação e organizações – Criativas 96, 97 e 99, que têm lugar em Beja, que contam com centenas de participantes, e que marcarão o início do desenvolvimento e disseminação, por todo o País, das práticas estruturadas e da investigação em Criatividade, nas mais variadas áreas.Eis Gisela Cañamero na primeira pessoa!
Como é que uma lisboeta com raízes em Espanha e França se vem fixar no Alentejo?A fixação no Alentejo ocorre por uma constelação de fatores: o facto de ter entendido encontrar, nesta região, uma veracidade cultural – de que é máximo expoente o cante – e natural, na altura, sem as explorações intensivas da terra; o de querer criar os filhos fora de meios densamente urbanos ou suburbanos; o de querer criar uma companhia profissional de teatro onde não existia qualquer estrutura semelhante. Beja foi, assim, a cidade escolhida para lançar as sementes de um trabalho de formação e criação artística.
Feita a escolha, que papel passou a desempenhar o Alentejo na sua carreira artística?O Alentejo tem uma marca poderosa em algumas das produções da Arte Pública, desde logo, a “Erma”, de Federico Garcia Lorca, apresentada no espaço da ACOS [Associação de Agricultores do Sul], entre fardos de palha, por nessa altura não existir um palco de referência na cidade. O Pax Julia Teatro Municipal permanecia ardido e encerrado, apesar de ter tido o privilégio de lá realizar ensaios, mesmo com o espaço em ruínas. “No avesso da pele”, performance poética com poemas de Eugénio de Andrade, é continuamente atravessada por imagens dos campos do Alentejo. E “O mundo da gente” dá voz aos maravilhosos e documentais textos de Eduardo Olímpio, onde são retratadas muitas das gentes de Ermidas, que se deslocaram ao Pax Julia para assistirem a esta produção – e dela saíram emocionadas. E “Nós todos três”, o meu primeiro musical, também é situado no Alentejo.
Com vários anos de estrada artística, que balanço faz em termos de investimento na arte?Considero que, no Alentejo, e no resto do País, tem havido, desde há uns 20 anos, um forte investimento nas infraestruturas – teatros e auditórios – e no respetivo equipamento, bem como nos recursos humanos a eles afetos. Longe vão os tempos em que, nas digressões, me davam a chave de um teatro abandonado e desde a limpeza à construção de proscénio para apresentar a produção, que não cabia no palco, e à “invenção” de camarins, a companhia tinha de fazer tudo se queria trabalhar. Depois, o desconhecimento sobre as necessidades da prática performativa, por parte das autarquias que recebiam a companhia, era gritante: em muitos sítios a instalação elétrica não aguentava meia dúzia de projetores ligados e a renovação que se tinha de fazer, no sítio e com prazos apertados, para viabilizar o espetáculo, criava desconforto aos diversos responsáveis pelos serviços autárquicos, muitos deles a dar os primeiros passos como programadores.
Para lá do glamour do palco, que constrangimentos continuam a ser espetadores assíduos do teatro em Portugal? Um teatro é apenas um espaço, e precisa dos criadores para lhe dar vida. A principal dificuldade que encontro é que, para além das ideologias, dos gostos pessoais, das estéticas preferidas, do público que enche a sala com a cara conhecida que passa na televisão ou com o programa que está na moda, é que quem gere a Cultura tem de estar ciente da sua enorme responsabilidade, pois trata-se de uma área que ainda sobrevive com grandes fragilidades. Considero que é necessário apoio, mas um apoio fundeado também no trabalho que é feito e na confiança que esse trabalho merece, e que passa também por chamar os criadores residentes a terem uma palavra na estruturação de uma continuidade programática para a região, tendo em consideração as falhas e lacunas a colmatar, com objetivos e estratégias bem definidos para a captação e formação dos diferentes públicos-alvo. Porque a política e a programação cultural feita por momentos-pico avulsos já não é aceitável. E é evidente que o financiamento tem uma importância crucial, porque é ele que permite afetar recursos às criações e à sua circulação. Desde que me lembro que criamos, fazemos acontecer e vivemos em permanente subfinanciamento. “O artista que pague a arte”, parece ser um lema bastante disseminado em muitas cabeças decisoras, como se, por qualquer razão genética, o criador tenha de ser alvo de uma permanente desconfiança. Em suma, há uma necessidade da confluência de programas e orçamentos próprios por parte do Governo central, através do Ministério da Cultura, mas também das comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), das autarquias, do Turismo do Alentejo e da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal). A criação artística e a prática cultural continuadas promovem mais-valias que não são imediatamente mensuráveis, mas que são transformadoras das comunidades onde estão fortemente implantadas, e isso tem de ser entendido pelos diversos poderes decisórios.
E como é que a escrita surge no trajeto de vida artística de Gisela Cañamero?A escrita dramática e/ou poética surge pela necessidade de encontrar textos que se adequem aos propósitos da colocação em cena. As primeiras obras escritas são trabalhos de teatro musical para a infância, público- -alvo que me merece especial atenção pela ausência completa de fruição de momentos performativos, que encontrei no concelho e no distrito de Beja, e que são promotoras do maravilhamento, da solução criativa de problemas, da empatia com o outro, mesmo, e, sobretudo, se o outro for diferente. “Nós todos três”, “Os músicos de Bremen” – a partir do conto dos irmãos Grimm –, “Debaixo do Céu”, são obras de grande dimensão e que respondem a esses desafios. Também por necessidade de levar a cena trabalhos de teatro musical para a infância, e que se adequassem a salas mais pequenas, escrevi as peças “Canta-me um conto”, “Um esdadigrário no armário” e “Íris, a menina que falava o que pensava”.
E para adultos?Das obras escritas para adultos destaco “As velhas”, comédia sobre a idade maior, muito bem recebida aqui e aclamada em apresentações feitas no Brasil, “Para além do muro”, sobre o gueto de Varsóvia, e “Skarin”, farsa publicada em 2017 e ainda a aguardar estreia, e inspirada no domínio e terror estalinista, e que, lida agora, parece uma profecia sobre Putin. Nesta obra, um ditador, Skarin, eleito “democraticamente” num país chamado Rustália, invade a vizinha Burmânia como manobra de diversão para se manter no poder e afastar a atenção dos graves problemas: fome, desorganização social, ataque e restrição às liberdades, justificando ainda as prisões políticas às vozes inconvenientes que ocorrem no país.
E sobre a valência de atriz, algum destaque especial?Como atriz, destaco a dupla interpretação, no mesmo espetáculo, de “Madalena J.”, em que interpreto, na primeira parte, a Madalena de “Maria Madalena ou a Salvação”, de Yourcenar, e, na segunda, após intervalo, Janis Joplin, em dramaturgia de textos recolhidos de entrevistas e em canções da Joplin traduzidas para português.
Algum momento inusitado experimentado ao longo do percurso artístico multifacetado?Aconteceu com “As velhas”, numa sessão realizada em contexto de aldeia, no concelho de Beja. Os atores, masculinos, Paulo Duarte e Luís Proença, travestiam-se para construir as personagens Etelvina e Ifigénia. A comédia cedo cativou o público presente. E dois homens, na casa dos 50, 60 anos, desfrutavam particularmente do espetáculo, rindo e cantando. Até que há um momento em que o público é desafiado a cantar e a dançar com as personagens. Os dois homens aceitam o desafio, apreciando “as atrizes” e comentando, entre si, uma ou outra situação cénica. Já muito perto do final, tomam conhecimento que as atrizes, são, afinal, atores. Sentindo-se feridos na sua “masculinidade”, levantam-se gritando que “foram enganados” e abandonam a sala.
O que está na “manga”?Escrita e estreada, neste ano, a produção “Meu amor, quem sabe um dia – teatromusical”, que integra, com o apoio da Câmara Municipal de Beja, o programa das comemorações de Abril. Encontro-me agora a escrever um novo texto, “Raiva”, obra sobre a relação tóxica de uma mãe dominadora e de sua filha, já abordado no álbum ilustrado Não Te Amo, Mãe, que aguarda lançamento em Beja, e que estreia em princípios de 2025.
“Casa da Gi”Sendo Gisela Cañamero uma mulher de convicções e de causas que vão para além dos palcos, quando chegou ao Alentejo percebeu que havia muito a fazer em relação à proteção animal, nomeadamente, em relação a cães e gatos errantes, presos em condições deploráveis, e/ou torturados pelos seus detentores, ou abandonados para morrer nos campos ou à beira da estrada. Merecem-lhe especial atenção as fêmeas, por estarem sujeitas a gravidezes múltiplas, perpetuando um ciclo de sofrimento, com a procriação de ninhadas sem fim. E é assim que se torna ativista animal, inquirindo responsabilidades às autarquias próximas e criando a “Casa da Gi”, abrigo animal reconhecido pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), tendo, neste momento, sob sua tutela, 36 cães e 10 gatos. A “Casa da Gi” é um projeto pessoal, suportado por amigos da causa animal, que só pode existir graças aos donativos que permitem a aquisição de ração, de antiparasitantes internos e externos e acompanhamento médico-veterinário permanente. A “Casa da Gi” promove visitas e interação com os animais, bem como as adoções responsáveis, sujeitas a acompanhamento.