Diário do Alentejo

Nuno Ega: “A arte torna os humanos mais humanos, faz de nós pessoas melhores e mais capazes”

02 de dezembro 2024 - 08:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Nasceu em Mértola, em 1964. Viveu em Beja durante cerca de 20 anos. Viveu em Santarém. Vive em Évora há 33 anos. Sobre a terra que o viu nascer, diz que a “ama profundamente, ao ponto de a considerar, com elevado facciosismo, a mais bela”. Por Beja criou amizades que perduram no tempo. E por Évora é professor universitário, por opção, porque acreditava que uma parte importante do conhecimento morava nas universidades.

Numa aula de português, do ciclo preparatório, nasceu--lhe o primeiro poema. E desde essa ocasião, outros se seguiram, “sempre à mão, quase sempre com canetas de tinta permanente”, como gosta de relembrar. Mudança de ciclo e mudança de convicções. Nos primeiros anos de aluno do Liceu de Beja acreditou que a literatura não era para ele, e o foco virou-se para as ciências com a pretensão de acumular conhecimento nestes domínios. E nem o facto de, a miúde, ver muitos familiares próximos lendo livros, de uma tia lhe oferecer livros e o levar, desde criança, a museus, concertos, óperas, bailados, entre outros, o fez tornar-se leitor, e a ciência continuou a falar mais alto, assumindo-se como um destino inevitável e desejado.

Porém, o programa de português do 9.º ano do liceu levou-o a ler Os Maias. Leu o livro com deleite. E depois leu outros livros com a mesma entrega. Leu um livro de Pitigrilli, leu Fernando Namora, leu David Mourão Ferreira, leu António Alçada Baptista, leu Soeiro Pereira Gomes e leu poemas de Neruda. Começou a ler e nunca mais parou. E depois começou a ouvir música de um modo diferente, encontrando mais sons na música que ouvia, e principiou a entender o que a música lhe dizia, assim como principiou a conversar com telas e com esculturas. Assume que gosta da arte, “porque esta pertence a uma outra dimensão, onde as pessoas são melhores pessoas, muito mais ricas, com outra capacidade de ler e viver os seus mundos”. Refere que não sabe cantar nem tocar “o instrumento mais singelo”, mas em si “toca, sem parar, uma orquestra”. Não sabe desenhar, mas fala “com as pinturas”, e às vezes acredita que “pinta quadros com palavras”. Não é artista, mas venera a arte.

Tem três livros publicados, todos de poesia e todos sob a chancela da editora Caminho das Palavras: a viagem do pano branco (2017), o rapaz que não sabia enterrar tempestades (2021) e três (2023).Eis Nuno Ega, pseudónimo de Miguel Elias, na primeira pessoa.

 

Como é que de Miguel Elias brota, para a literatura, Nuno Ega?

Nuno é um dos meus dois nomes próprios, e é usado por alguns dos familiares mais próximos. Ega é o nome de uma personagem criada por Eça de Queirós para o livro Os Maias. E este nome não foi escolhido por algumas características pouco abonatórias de João da Ega, mas sim pela sua rebeldia, pelo seu sentimentalismo, pela sua união ao amor, pelo seu lirismo, pela sua postura crítica, pela sua tendência para o exagero, para a exacerbação dos sentidos.

 Quando e como foi descoberta a afinidade para as letras?

Quando frequentava o ciclo preparatório, em Beja, numa aula de português. A professora pediu aos alunos que escrevessem um poema. Até então nunca tinha experimentado escrever um verso. Quando terminou a aula havia escrito o meu primeiro poema. Ainda hoje o guardo. Ainda hoje gosto dele.

 

Quais as motivações para escrever?

Escrevo para me apaziguar, para melhor me conhecer e para registar momentos. De um modo geral, os temas dos poemas aparecem-me e não me deixam até eu os passar para o papel. Quando começo a escrevê-los eles ganham vida própria e tomam o seu caminho e eu apenas faço o trabalho de burilador. Algumas vezes tenho ideias pré-concebidas para o poema, no entanto, quase sempre ele segue para outros destinos, aparentemente diferentes, porém, a voz que fica a ecoar diz o que tinha de ser dito, justifica a razão por que o poema nasceu.

 

Para além da poesia, ao longo do percurso foi experimentada mais alguma valência da escrita?

Tenho escritas algumas crónicas. São pequenas histórias que eu quis contar e ainda não contei, e que, na sua grande maioria, só eu as conheço. Tenho dois textos mais longos, um, seguramente, nunca verá a luz do dia, e o outro está interrompido. Veremos o que lhe acontece.

 E para além da escrita, mais alguma expressão de arte na vida de Miguel Elias?

Na verdade, sou pouco dotado para criar arte. Apenas me atrevo em esboços criativos fazendo uso das palavras. Sou um grande admirador, não conhecedor, da arte. Tenho um fascínio particular pela pintura, pela música e por algum cinema, mas sou fraco em criações. Apesar disso, sinto um grande contentamento por ser impressionado pelas criações artísticas e é minha forte convicção de que a arte torna os humanos mais humanos, faz de nós pessoas melhores e mais capazes.

 

Que livro é este?

Na opinião de algumas pessoas próximas de mim que leram o livro, três dá a conhecer um conjunto de poesias mais maduras do que as apresentadas nos dois títulos anteriores. Essa apreciação é bem entendida por mim, na medida em que os livros anteriores mostravam uma poesia mais antiga, talvez mais pueril. Recebi com agrado estas críticas informais porquanto revelam mudança na poesia que escrevo e isso, aos meus olhos, é coisa boa. Este último livro tem relação com os anteriores, porque ele constitui mais um marco de um percurso, e se houver mais livros, e creio que sim, eles serão outros marcos, colocados mais adiante, de um percurso que vou cumprindo. Por conseguinte, três não fecha nenhum ciclo, é uma estação numa viagem inacabada. Inicialmente tinha outro título, mas quase à hora de o entregar ao editor optei pelo título publicado, e a razão principal não foi ser o terceiro livro.

 

E quem são os destinatários do três?

Os destinatários do livro, digo-lhe que há poemas que foram escritos para pessoas que me são queridas, apesar disso, o livro destina-se a todos os que ousarem usar o seu tempo para o lerem, talvez na esperança de encontrar bocados de si nos poemas que agora também são seus.

 Que papel desempenha o Alentejo na poesia de Nuno Ega?

Nasci alentejano, sou e serei sempre alentejano. Não quero mudar, e se quisesse não conseguiria. Não procuro que a minha poesia seja sobre o Alentejo, contudo, o Alentejo está muitas vezes na minha poesia, porque sou eu quem a escreve e eu sou alentejano. Tenho a felicidade de ter estado em muitos lugares do mundo, mas eu pertenço ao Alentejo. De um modo mais pormenorizado, posso dizer que o meu lugar é Mértola. Não moro na minha terra há mais de 50 anos, mas sempre senti que sou de Mértola. Por conseguinte, quando escrevo, quase sempre estou a sentir a minha terra, quando falo em rios falo do Guadiana, e quando falo do mar, penso nas águas onde o meu rio vai desaguar.

 Alguma situação inusitada experimentada durante o processo criativo?

Quando estou tomado por um poema ele não me abandona enquanto o não terminar. Mesmo assim, por vezes, apesar de crer que o poema está terminado, aparecem-me mais palavras que tenho de lhe juntar, o que me leva a tomar notas em ocasiões menos próprias, ou me impedem de encetar o sono. A este propósito, recordo-me de ter adormecido tardíssimo numa noite, quando morava em Beja e tinha 16 ou 17 anos, porque era invadido por pequenos poemas que me obrigavam a levantar para fixá- -los no papel. Recordo-me muitas vezes deste acontecimento. Guardo esses poemas num livro só meu, dactilografado na estação dos caminhos de ferro de Beja por um senhor brioso, funcionário na estação, que eu visitava amiúde para garantir a fidelidade da transcrição do manuscrito que lhe havia entregado. Foi encadernado em capa de couro, como se se tratasse de uma grande obra. Este livro chama-se Bocados e só tem préstimo para mim.

 

Que opinião tem sobre o universo da escrita em Portugal e no Alentejo?

Tenho um gosto especial por ler autores portugueses. Sinto de uma forma mais próxima a sua linguagem e creio fazer melhor entendimento das emoções e mensagens que me transmite a escrita de autores portugueses. Há muitos autores portugueses, e bons. Há muita gente a escrever. Há bons escritores, muito bons, sem tempo para escrever, sem oportunidade para escrever. Ocorre-me, com frequência, o nome de João Ricardo Pedro, que em 2011 ganhou o prémio LeYa. É engenheiro eletrotécnico e escreveu O Teu Rosto Será o Último num período em que estava desempregado. Em junho foi estreado um filme de Luís Filipe Rocha, com aquele título e inspirado na obra. Tanto quanto sei, depois do seu primeiro livro, publicou apenas mais um romance, em 2016. Atrevo-me a dizer que a sua vida profissional o impede de ser um escritor mais produtivo. E esta realidade leva-me para o conceito que tenho de arte. O que João Ricardo Pedro faz na sua atividade profissional, como engenheiro eletrotécnico, muitas outras pessoas o poderão fazer. Mas os livros que João Ricardo Pedro escreve só ele os pode escrever, e isso é criar, isso é arte. É claro que eu gostaria que João Ricardo Pedro escrevesse mais livros, mas ele saberá porque não no-los apresenta. Quanto à escrita literária produzida por alentejanos, tenho conhecimento de alguns autores de romance e de poesia, mas sem a expressão do escritor e poeta nascido em Galveias. As editoras que existem em Portugal têm uma responsabilidade grande na divulgação de alguns autores e no silenciamento de outros. As editoras necessitam de ter lucros, pelo que, de um modo geral, apenas publicam as obras que creem resultar em vendas apetecíveis. Esta realidade deixa de fora muitos escritores e poetas que ficam com as suas obras na gaveta. Outras editoras há que funcionam como tipografias. Reproduzem um determinado número de exemplares de uma obra e recebem um certo valor pelo seu trabalho. O autor é o dono dos exemplares e terá de os vender, se não fizer questão de ficar com todos eles. Para muitos autores esta é a via possível, por vezes a mais fácil, para terem as suas obras acessíveis a um público um pouco mais alargado.

 E o acordo ortográfico, qual o posicionamento face à polémica?

Faço uso escrito da língua portuguesa anterior ao acordo ortográfico de 1990, por duas principais razões: 1) a minha dicção, na grande maioria dos casos, está de acordo com a ortografia ante acordo de 1990; 2) entendo que uma língua não se muda por decreto. Em reforço da última razão que apontei, posso invocar a realidade em Portugal, onde 34 anos após a assinatura do acordo há muitas pessoas a utilizar a linguagem escrita anterior ao acordo. Há anos, já não sei precisar quantos, o Estado português “obrigou” os seus funcionários a usarem a ortografia acordada em 1990. Sou funcionário público e nunca escrevi segundo a ortografia imposta, porque não me assenta, porque não condiz com o meu modo de pensar e falar, porque, a meu ver, não estamos a assistir ao nascimento de uma língua nem vivemos numa babilónia de línguas que justifiquem imposições estatais. A língua vai evoluindo, gradualmente, de acordo com os seus utilizadores. Além do mais, o esforço não resultou, em Portugal continuamos a usar palavras velhas e novas, talvez o mesmo ocorra no Brasil, e quanto aos países africanos que têm o português como língua oficial apenas Cabo Verde implantou o acordo. Atendendo à idade do acordo, e às divergências que ele tem suscitado, considero que a intenção não foi bem-sucedida.

 

Que sonhos literários moram em Nuno Ega?

Sou pessoa de muitos sonhos, mas não tenho sonhos quanto à minha atividade literária. Escrevo poesia e a poesia tem poucos leitores, por comparação com os leitores de romance, por exemplo. Creio que a minha poesia é do conhecimento de um número muito restrito de pessoas, mas gostaria que ela chegasse a mais leitores. Agora que lhe estou a responder, creio ser este o meu sonho literário: que a minha poesia chegue a mais pessoas. Afinal tenho um sonho literário!

 E o que está na “manga”?

Mais um livro de poesia, que antecederá um outro, e por aí adiante. Talvez escreva um romance, lá mais para a frente.

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