Texto | Luís Miguel Ricardo
Nasceu em Évora, no ano de 1966, e por Évora permaneceu até à atualidade. Foi radialista, formou-se em teatro e, no início dos anos 90, fundou, em conjunto com outros companheiros de gostos similares, uma associação cultural, através da qual percorreu o País e o mundo, apresentando formas artísticas marcantes da identidade e tradição do Alentejo.Em 2009, este mesmo grupo, esta mesma associação, depois de levar o Alentejo ao mundo, decidiu trazer o mundo ao Alentejo, criando um espaço próprio para apresentar artes e artistas de todos os cantos do universo no coração do território. Ao longo do seu trajeto de vida, e integrada nesse coletivo cultural, participou na criação de grupos musicais, de que é exemplo o projeto “Macacos”, uma banda de metais que tocou música portuguesa pelas ruas do mundo; participou na produção, na década de 90, do grupo Modas à Margem do Tempo, um trabalho em que as modas do cante eram interpretadas e acompanhadas pelo acordeão, violoncelo e guitarras, além das vozes; participou na criação de peças de teatro, assim como em todo o processo de as levar ao encontro do público; participou na criação de festivais de rua; na criação de filmes documentários sobre o “Saber fazer” e sobre “Mulheres que se destacam no Alentejo”; participou na conceção e produção de exposições de fotografia, a última com o fotografo José Manuel Rodrigues “Vi(gente)”, numa homenagem às gentes que marcam a vida das aldeias alentejanas; participou na gravação e edição de discos de música, livros de poesia, livros de fotografia, entre outros; participou na criação do Armazém 8, na cidade de Évora, um espaço que faz parte da Rede de Teatros e Cineteatros de Portugal.Diz-se incapaz de viver sem viajar, sem conhecer outros povos e outras culturas. Eis Lurdes Nobre na primeira pessoa!
Quando e como foi descoberta a vocação para o universo cultural? Acho que foi com o meu pai. Ele esteve sempre ligado a coletividades, eu via ensaios de teatro, de música, assistia aos espetáculos, participava nas atividades, e acho que foi acontecendo, embora nunca tivesse sonhado trabalhar nesta área. Quando estudava no liceu queria ser advogada. Mas acabei entrando no curso de teatro, porque um amigo me inscreveu. E comecei a fazer rádio, porque uma amiga precisava de alguém para dizer uns poemas num programa seu. Quando me dei conta, ser advogada já não me dizia nada e eu já trabalhava na área da cultura. Tendo contactado com várias formas de expressão artística, predomina alguma preferência sobre essa diversidade?Não posso dizer que seja uma preferência, mas, sim, uma apetência. O teatro é o que mexe mais comigo, embora adore música, cinema e todas as outras áreas. Contudo, quando coloco a “mão na massa” deixo os bastidores e subo para o palco ao encontro do teatro. Vestir a roupa de outro, falar a fala que não é a minha, faz-me feliz, preenche-me. Armazém 8. Que projeto é este?O Armazém 8 é uma sala de espetáculos. Uma sala multiusos que serve para todo o tipo de apresentações, para aulas, para ensaios. É a única sala a sul independente e nasceu da vontade da associação de que Évora tivesse uma outra sala, pois só tinha o Garcia de Resende. Foi criada de raiz. Comprámos o terreno à câmara, fomos buscar dinheiro à banca e construímos. Tudo sem apoios. Era um sonho. Lutámos por ele e concretizámo-lo em cinco anos. Nasceu em 2013, em pleno período de intervenção da Troika, o que fazia prever que iria morrer rápido, mas, felizmente, isso não aconteceu. Conseguimos que o público viesse aos espetáculos, participasse nas atividades e, neste momento, já tivemos de comprar o espaço do lado para a ampliar. A missão é simples, ou seja, trazer à nossa sala projetos artísticos de todas as áreas, de todo o País e do estrangeiro, que, sendo bons, não conseguem mostrar-se ao público nos palcos nacionais e municipais. Pois, como sabemos, esses estão ocupados com a cultura da moda. Queremos poder dar ao público a oportunidade de ver artes que não lhe são mostradas pelos municípios e pelas televisões. Queremos criar novos e mais capacitados públicos. Que emoções e que preocupações se experimentam quando se assume a responsabilidade de alinhar conteúdos culturais para um território tão singular como é o Alentejo?As preocupações são enormes. Primeiro, sem apoios estatais ou europeus, conseguir pagar às equipas, aos grupos, é sempre uma aventura. Depois, a responsabilidade das escolhas. É difícil saber até ao fim de cada apresentação se o público fica satisfeito, se de alguma forma o espetáculo o marca ou toca. E, depois, estamos no Alentejo, a população não é muita, não tem muito dinheiro e não há muito o hábito de pagar para ver espetáculos. Felizmente, a sala já é uma referência a nível nacional e já vem gente de outras zonas do País para ver os espetáculos, já que alguns só se apresentam em Lisboa, e aqui os bilhetes são bem mais baratos. Isso deixa-nos felizes, assim como ficamos felizes quando enche e, felizmente, enche muitas vezes. E quando no final os grupos agradecem as boas condições e o público sai a agradecer e a dizer que gostou, o peito enche-se de satisfação e dá-nos coragem para continuar o caminho. Temos também a preocupação de criar redes com outros locais, para podermos trazer artistas estrangeiros, e isso é sempre um processo demorado, longo, complexo. Criamos ligações com os países lusófonos, com a rede latina e com a rede de jazz americana, mas queremos entrar noutras redes para podermos trazer ainda mais projetos diferenciadores. Porém, para isso, precisávamos de mais gente a trabalhar e isso requer apoios que teimam em ficar em Lisboa e no Porto. Que papel desempenha o Alentejo no percurso cultural e artístico de Lurdes Nobre?Sem o Alentejo não havia Lurdes Nobre, quanto mais percurso cultural. Só sentindo o nosso Alentejo é possível ter coragem para continuar o caminho. O Alentejo é um território de coragem, e é ele que me dá coragem para continuar a lutar todos os dias pelas artes. É a nossa gente que me dá ânimo para seguir em frente, porque o longe do nosso horizonte fica “logo ali” e eu sigo a viagem. Porque, antes de mim, muitos se dedicaram a fazer desta uma região de marcas culturais fortes, resistentes, que modificaram formas de pensar, e por eles temos de continuar a fazer a nossa parte, temos de continuar o seu legado. Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira, consegue nomear os mais marcantes?Amo todos os trabalhos que fiz. São como filhos, todos diferentes, mas todos marcantes. Mas o mais marcante talvez seja mesmo o Armazém 8. Afinal, só gente doida se mete a construir uma sala de espetáculos, um espaço para o ensino das artes, sem qualquer apoio, só na base da paixão e da coragem. Alguns momentos inusitados experimentados ao longo do percurso ligado às artes e à cultura?Tenho muitos episódios caricatos e engraçados, mas posso destacar alguns engraçados, como quando enviámos o grupo Macacos das Ruas de Évora a um festival de jazz perto de Paris e o alentejano Rui Gonçalves ganhou o prémio de melhor percussionista do festival, quando nem sabíamos que estava a haver um concurso. Ou quando o mesmo grupo foi convidado para abrir o espetáculo, no Coliseu, dos 25 anos do Xutos e Pontapés e, em vez de ir para o palco fazer a abertura convencional, como eram uma banda de rua, resolveram andar no meio da imensidão de pessoas. Eu deixava de os ver, o tempo a passar, a hora dos Xutos subirem ao palco a chegar, e eles lá no meio, perdidos a tocar, com o público à volta a dançar. Ou então um episódio que quase me matou do coração. Produzimos o Cenas ao Sul, um festival que durou três meses e onde atuaram 184 grupos. Para fechar, foi criado um espetáculo com os vários coros de Évora, a Sinfonietta de Lisboa e a Ronda dos Quatro Caminhos. Um espetáculo com uma produção enorme, com os tempos todos marcados, apresentado em frente ao Templo Romano. Estava tudo a correr bem e, mesmo no fim, subitamente, fica tudo às escuras. A luz caiu. Corri em busca do eletricista, sabendo que não iriamos acabar o espetáculo, e eis que o mestre Soares, o responsável pelos Cantares de Évora, avançou para a boca do palco e começou a cantar à capela “vamos lá saindo”. Todos os músicos se levantaram e se aproximaram do mestre e acompanharam-no na moda, que terminou com todo o largo de pé a cantar com eles, iluminados pela luz da lua cheia. Foi uma coisa arrepiante, mágica. A ovação do final foi estrondosa e, no escuro, as pessoas que se cruzavam comigo, que havia ficado parada no meio, iam dizendo: “parabéns, que final lindo!”; “final fabuloso, nunca tinha visto nada igual!”. Nem eu, mas realmente foi lindo e impactante. Eu sobrevivi e o espetáculo foi salvo pelo mestre Soares, pela sua voz, pela sua rapidez de decisão e pelo seu amor à arte, que o fez não deixar que a “falta de luz” atrapalhasse algo que tinha sido lindo até então. Qual a opinião sobre o universo cultural em Portugal e, sobretudo, no Alentejo?Uma das maiores pensadoras sobre cultura do mundo disse há uns anos que “neste século estamos tão concentrados nos nossos umbigos, em ser diferentes, que não deixamos nada para o futuro, tudo é efémero”. Acho que ela tem alguma razão, o que está hoje a ser mostrado é consumido agora e não deixa raízes. Mas é o que está a ser mostrado, porque há gente a fazer arte que fica, arte que deixa raízes. O problema é que não a consegue mostrar. É um contrassenso, pois estes são os tempos onde “mostrar” seria fácil, uma vez que há muitas mais formas do que no passado, mas o que se consegue ver é pouco consistente, não fica. O resto não consegue chegar às pessoas. Serve para o País e para o Alentejo. Mas aqui ainda resistimos. Nós, de alguma forma, fazemos com que chegue a alguns e, por exemplo, o Baixo Alentejo luta bravamente por manter as tradições, quer de cante, da viola campaniça e dos saber-fazer. Digamos que por aqui ainda há “quem resista, quem diga não”, e isso é mais um dos motivos para me orgulhar de ser alentejana. Mas o problema maior que vejo é a “municipalização da cultura”. Os criadores e as estruturas criativas estão a deixar de “ser livres”. Hoje para se fazer um projeto é preciso apoios, e esses apoios, para se conseguirem, tem de respeitar as regras dos concursos nacionais e municipais, e essas regras condicionam caminhos, criam estéticas criativas definidas pelo poder e isso condiciona a criação, condiciona os projetos, ficam todos a parecer o mesmo, pois são todos dirigidos para o mesmo caminho. Hoje, uma “Amália” não se destacaria. Este é um caminho perigoso e redutor, o condicionamento da arte e dos artistas nunca pode dar bom resultado, pois eles têm de marcar a diferença, apontar os problemas, mostrar caminhos alternativos. Não se subordinar a regras de concursos, mas a classe está a aceitar, pois é o que lhe ensinam nas universidades. Poucos são os que se opõem, e esses têm o caminho cada vez mais dificultado. Nós tentamos resistir, por isso não conseguimos apoios senão de quando em vez. Vamos ver até quando conseguimos resistir. Está cada vez mais difícil e cansativo.
Que sonhos artísticos e culturais moram em Lurdes Nobre?Eu sonho alto. Queria que a Capital Europeia da Cultura – Évora 2027 – invadisse todo o Alentejo. Queria ver, em 2027, todo o Alentejo a “bombar” com formas artísticas, desde as cidades às aldeias. Queria que fossemos capazes de nos juntar TODOS, para mostrar ao mundo que temos um território criativo, cheio de marcas culturais identitárias que se renovam e que vão ajudar o mundo. O que está na “manga”?O alargamento do Armazém 8 é um projeto que já está em marcha. A apresentação de um coro de vozes, O Colectivo dos Remédios, orientado pela cantora Mara, no qual temos estado a trabalhar neste ano e que será apresentado até ao fim do ano num festival só de vozes. Uma peça de teatro que estamos a escrever e que irá ser muito divertida. E uma exposição de fotografia sobre o novo caminho de ferro, com fotografias de António Carrapato. Isto, claro, para além da programação do Armazém 8, para marcar as noites de sexta-feira, entre este mês de outubro e julho de 2025.