Diário do Alentejo

Dora Nunes Gago vence Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, da Associação Portuguesa de Escritores, do ano de 2024

01 de setembro 2024 - 08:00
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Texto | Luís Miguel Ricardo

Dora Nunes Gago nasceu em São Brás de Alportel, a 20 de junho de 1972. Aos 18 anos trocou o Algarve pelo Alentejo, para dar sequência aos estudos na Universidade de Évora. Concluída a licenciatura em Português e Francês (Ensino), começou a lecionar em escolas da região, conciliando o trabalho com o mestrado em Estudos Literários Comparados, na Universidade Nova de Lisboa. Em 2001, decidiu partir à descoberta de outras geografias e o Uruguai foi o destino, onde desempenhou, durante um ano, as funções de Leitora do Instituto Camões na Universidade da República Oriental do Uruguai, em Montevideu. De regresso a Portugal, fez doutoramento e fixou-se em Vila Nova da Baronia, localidade do concelho de Alvito. Porém, a vontade de indagar por outros territórios, a vontade de abraçar outros mundos, continuou a desassossegá-la e, em 2011, um projeto de pós-doc financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e desenvolvido na Universidade de Aveiro, levou-a para a Universidade de Massachusetts Amherst, nos Estados Unidos da América, onde foi short term visiting scholar. E porque o desassossego da descoberta lhe continuou a fervilhar no espírito, fez-se culturalmente nómada, trocou o ocidente pelo oriente, tornou-se professora auxiliar, depois associada e diretora do departamento de Português da Universidade de Macau, território onde permaneceu até ao final de 2021, embora tenha ainda trabalhado para a Universidade de Macau até ao fim de agosto de 2022.Regressou à Europa, regressou a Portugal, regressou ao seu recanto de Alentejo, na ressaca da pandemia. Na bagagem trouxe as culturas do mundo, as vivências do mundo, as emoções do mundo. Na bagagem trouxe vontade de partilhar todo esse mundo guardado dentro de si. Essa partilha fez-se com palavras em forma de literatura de viagens. A essa partilha chamou Palavras Nómadas. E Palavras Nómadas foi o título premiado pelo júri do Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga da Associação Portuguesa de Escritores, do ano de 2024.

 

Como foi receber a notícia de tamanha distinção literária?Foi uma enorme alegria e emoção, precedida de uma certa incredulidade no início.

 

Palavras Nómadas. Que obra é esta? Palavras Nómadas é um livro de crónicas que são também retalhos de vida dispersa por vários pontos do mundo. São uma espécie de nó para atar os dias, os anos, as vivências por vários espaços, uma forma de compreender o Outro. Enfim, 50 crónicas que assinalam 50 anos de vida. O livro começa com o voo para Montevideu, em 2001 e as peripécias que o envolveram, nomeadamente o facto de a mala se ter extraviado e ter chegado apenas com uma mochila pequenina que levava comigo. Depois das várias aventuras pelo Uruguai, são relatadas as de Macau, mas também as acontecidas em múltiplas viagens pela Ásia, e também pela Europa e Estados Unidos, onde ia com alguma frequência, em trabalho, para participar em conferências ou fazer investigação. Além disso, há uma dimensão muito importante nas crónicas que é a dimensão da literatura, os livros e os autores que me vão acompanhando pelas viagens e pela vida, que vão desde os autores portugueses como Maria Ondina Braga, Lídia Jorge, Miguel Torga, José Rodrigues Miguéis, Vergílio Ferreira, mas também Pamuk, Lovecraft, Clarice Lispector, Olga Tockarzurk, e tantos outros. No fundo, a literatura é feita de vida e a vida alimenta-se dela.

 

Seria possível existir Palavras Nómadas sem o percurso “nómada” de Dora Gago?Não, não seria. Neste caso, a itinerância, o movimento, a viagem, são essenciais. Michel Onfray na sua obra Teoria da Viagem, uma poética da geografia, começa por aludir a uma divisão dos seres humanos entre nómadas e sedentários, herdeiros de Abel ou de Caim, dos pastores ou dos agricultores. Claro que ninguém é completamente nómada, nem inteiramente sedentário, mas haverá tendências dominantes. No meu caso, sobretudo durante os dois anos de confinamento forçado num território de 28km2, como Macau, aprendi a valorizar muito a liberdade de nos movimentarmos. Olga Tockarzurk, no livro Viagens, refere que é do movimento que colhe a energia para escrever. Identifico-me também com essa ideia.

 

Como foi essa experiência de viver a pandemia na “pátria génese da pandemia”? A experiência da covid zero foi realmente dura. As restrições impostas eram muito rígidas. Todos os dias, antes de sairmos de casa, tínhamos de preencher um questionário, no qual declarávamos que não tínhamos febre, nem tosse e mais uma série de coisas. As respostas geravam um código verde que tínhamos de mostrar à entrada de todos os edifícios, estabelecimentos, enfim em todos os lugares e meios de transporte. Além disso, era-nos sempre medida a temperatura. Se houvesse um único caso suspeito era tudo fechado, o bairro podia ficar interdito durante semanas, as pessoas trancadas e toda a população (perto de 700 mil habitantes) era testada em massa, durante umas 48 ou 72 horas, no máximo. A testagem era obrigatória. Estas coisas seriam impensáveis na Europa, por exemplo. Os trabalhadores estrangeiros se conseguissem sair de Macau, já não poderiam regressar. Por outro lado, os residentes que regressassem a Macau tinham de fazer quarentenas de três semanas, fechados em hotéis, nos quais eram continuamente testados.

 

Como é que os olhos do escritor percecionam todas estas vivências do mundo para as transformar em literatura? É espontâneo, é treino, é vontade?Penso que é um pouco das três coisas. Há uma confluência entre a espontaneidade e a vontade, e depois tem de surgir o treino, o trabalho. Toda a escrita é sempre um trabalho de oficina que se prepara através de muitas leituras, que funcionam como substrato. Depois, como dizia o escritor brasileiro Ariano Suassuna, “o que é ruim de viver, é bom de contar”. Há crónicas que partem de experiências duras que tentei vestir de humor, pois o humor também pode funcionar como um escudo que nos protege das agruras do quotidiano.

 

De todas as vivências de mundo experimentadas, que momentos foram mais marcantes? É um pouco difícil escolher vivências marcantes, pois quando se vive num lugar onde a comunicação é difícil, como acontece em Macau ou na China, as atividades diárias mais simples são feitas de aventuras. Tudo é aprendizagem e descoberta. Tudo marca. Para se chegar a algum lugar tem de se levar a foto, o nome em chinês e pensar em não sei quantas estratégias. A comunicação é a base de tudo e quando falta gera-se o caos. Mas posso destacar algumas situações. Uma delas aconteceu na China, em Hangzhou, onde fui sozinha passar um fim de semana alargado. Tinha planeado ir dar um passeio de barco pelo West Lake e fiquei muito feliz por ter conseguido chegar ao porto, comprar o bilhete e embarcar. O que eu desconhecia era que o West Lake tinha 50 ilhas. Então o barco andou meia hora, parou na ilha, toda a gente saiu, eu também saí. A seguir o barco desapareceu e não apareceu mais nenhum. Passei horas a vaguear, enquanto anoitecia e chovia. Tinha um telemóvel sem bateria (se a tivesse também não teria a quem ligar), perguntei a dezenas de pessoas o modo de voltar para terra, para o hotel e ninguém me sabia dizer. Achei que ia ficar o resto da minha vida nessa ilha perdida. Até que encontrei uma guia chinesa com dois casais ocidentais e fui pedir ajuda, pois certamente falaria inglês e saberia a maneira de sair dali. Até ela teve dificuldades, mas lá me salvou. Essa aventura inspirou-me um conto do livro Floriram por Engano as Rosas Bravas. Depois, houve o deslumbramento de ver o Templo do Angkhor Wat , em Siem Reap no Camboja, a Muralha da China ou a cidade de Varanasi na Índia, onde fui em 2022, para participar num festival literário da Longa Noite das Literaturas Europeias.

 

Voltando à obra vencedora. O texto está publicado num formato diferente do habitual. Quer deslindar o conceito que está por detrás da singularidade física do livro?Palavras Nómadas, tal como o anterior, Floriram por Engano as Rosas Bravas, foram publicados pelas Edições Húmus na coleção12catorze. Trata-se de uma coleção de bolso, dirigida por Francisco Guedes, cujo objetivo era publicar livros que custassem tanto ou menos do que um maço de tabaco. E é isso o que acontece, os preços oscilam entre os 3 e os 5 euros. Neste momento, a coleção conta com cerca de duas centenas de livros publicados, pautados pela qualidade. Infelizmente, a divulgação acaba por não ser a que devia, pois o mercado editorial é dominado pelas grandes editoras. Os outros dificilmente chegam às livrarias, embora possam ser comprados on line.

 

Que importância tem este prémio para o consolidar do seu percurso como escritora? É sobretudo uma grande alegria e um reforço muito positivo. Quanto ao resto, o futuro o dirá.

 

Sendo membro da Assesta - Associação de Escritores do Alentejo, que importância pode ter esta sua distinção individual para a associação?Sinceramente, espero que possa ter alguma importância, que contribua também para a divulgação da Assesta.

 

Para quando o próximo projeto de viagem? A próxima grande viagem será em outubro para ir a Macau (mas com bilhete de ida e volta) para apresentar precisamente o Palavras Nómadas e tratar de outros assuntos.

 

E o que está na manga da escritora Dora?Por agora, há um romance e um livro de poemas (concluídos) e, também, um de crónicas, em construção.

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