Vanessa Schnitzer
Caros leitores, hoje o tema é inspirado na força dos tempos, que oscila entre o terror e a esperança, que surge aliada a um coletivo manipulável e passivo. Existe um provérbio chinês que é uma maldição e que deseja ao outro: “Que vivas em tempos interessantes”. Não é chinês, mas a maldição é verdadeira. Estamos a viver tempos interessantes e não são bons. Aos olhos da história, que provavelmente não tem olhos, há duas teses dominantes, que parecem ter sido escritas, cada uma delas, por um filósofo grego. Do lado de Heráclito de Éfeso, tudo flui e nada permanece; do lado de Parménides de Eleia, nada realmente muda. Podemos analisar o contexto atual das duas formas, mas os resultados não oferecem visões muito diferentes – há sinais que já vinham de trás e há surpresa, na fábrica da história. O que impera é a incerteza, a surpresa, a dificuldade de dizer onde tudo isto vai parar.
Hoje, enfrentamos vários riscos que ameaçam todos os setores da nossa vida. E são de dois tipos: um é a crise de ilusões de excecionalidade; o outro, bem mais perigoso, é esquecermos que vêm dos homens e não das máquinas os piores dos riscos, porque nunca na história da humanidade uma tecnologia por si só teve um papel de mudança, a não ser pelos homens que a dominam e pela sociedade onde se desenvolve. Hoje, a inteligência artificial é apresentada como um risco para a criação. Porque ser criador é fazer parte de uma resistência absurda que vela pela continuação da consciência. A alma do artista está ligada à de um deus por um fio de seda. Esse fio é cortado pelo algoritmo. A verdadeira morte do artista é retratada por George Orwell, com a bota que esmaga o rosto humano… eternamente.
Antigamente, por mais caótico que se apresentasse a vida, existia sempre a compensação natural, uma garantia de permanência e lealdade oferecida pela terna e cíclica dádiva da mãe-natureza. Nisto, como em tudo na vida, valia sempre o velho dito que manda conhecer as árvores pelos frutos. A colheita é sempre, e só, no futuro – e o mais é com Deus. Noutra imagem, mais prosaica, mas não menos verdadeira, a essência do fruto é alheia decerto ao modo como este nos pode chegar às mãos. E através dele, corre o sangue, que irriga a vida, a âncora de última instância para todos os estados caóticos que o ser humano pode desencadear, seja no plano físico, emocional ou mental. O sagrado néctar é a resposta da terra ao sol, e na medida em que esta ligação se interrompe, a luz natural passa a dar lugar a uma luz artificial que preenche a urbe. Tenho esperança que possamos voltar à essência do copo de vinho, e, através dela, repor a luz da consciência, alimentar o espírito divino. A tal força vital, que ajuda tanto a vencer os caprichos da sorte, como as más reviravoltas do penoso destino, e através dela resgatar a essência do amor – o amor imanente.
Podemos fazer um exercício: imaginar um mundo em que a palavra está ausente, um mundo sem logos e ethos; paralisado na contemplação abismática do não-ser e que, no grande silêncio cristalizado, uma palavra retine e mesmo que tenha apenas quatro letras como a palavra amor…, eis que tudo estremece e se agita, despertando do sonho para a vida, da estagnação sublime para a ação criadora.