Diário do Alentejo

Del CamiNo

24 de junho 2024 - 09:30

Vanessa Schnitzer

 

Caros leitores,

Perdoem-me por não vos brindar com o tema habitual, mas, impelida pela vida e pelos novos caminhos, pensei que pudesse interessar ao espírito do público leitor ao socorrer-me desta exceção. Como a vida obriga a novos recomeços, decidi percorrer o caminho até Finisterra, o tal caminho do mistério das incertezas oceânicas “onde a terra acaba e o mar começa”.

É muito interessante a ideia de percorrermos o único caminho, cujo ponto de partida é o fim. Ou seja, o caminho depois do fim que une e conduz ao marco zero da caminhada. Um caminho que nos levará até ao início. É preciosa esta ideia, de pensarmos que não existe tempo, nem idade, para novos começos. Vamos sempre a tempo de recomeçar. E tão coincidente a oportunidade, em que testemunho o milagre da floração, o dom da nova estação, que abre a janela para novos começos. Impedida pelas circunstâncias da vida, dependentes dos estranhos humores da vinha, de percorrer o tão ansiado caminho… até que por força e graça da divina intervenção do Santo milagreiro floresce o milagre nova estação que me abre as portas Del Camino. É por estas e por tantas outras que me sinto cada vez mais disponível para a surpresa e o espanto, desejosa dessa porção de desconhecido que a vida tem reservada. “O peregrino dá sua energia ao Caminho tornando-o vivo, e o Caminho inicia o peregrino, levando-o ao encontro de seu potencial oculto”.

Dessa forma, ainda no início da primeira etapa, ao ver a catedral de Santiago desde o alto de uma colina, detive-me por alguns instantes num olhar de “até breve” àquela que fora, por bastante tempo, a meta a ser alcançada. Porém, agora vista por um outro prisma, relembro os caminhos que ficaram para trás. O que significa, acima de tudo, um crescimento, um passo a mais na caminhada da vida que agora segue outros caminhos.

Ao deixar a porta do Peregrino para trás, sigo numa espécie de marcha nupcial pelo bucolismo pitoresco dos trilhos. Fiquei maravilhada, com as dobras, as cores de verde que alegravam a vista, e o chão onde firmei os pés assumiram o carácter daquelas coisas tão sagradas e íntimas. O deslumbramento, a cada passo, é uma sensação que não consigo evitar. O panorama das extensas modulações arbóreas virginais, desenhado pelos milheirais, pinheiros e eucaliptos que formam o berço para a típica arquitetura popular de espigueiros e igrejas românicas. Até aqui, descrevo uma paisagem imóvel, mas existe outra, mais móvel, que faz parte da paisagem. Os peregrinos que vão chegando de toda a parte, e que ajudam a libertar, durante alguns quilómetros, da bagagem extra que carregamos, não só das mochilas, mas também daquela que trazemos no coração, e que tantas vezes nos impede de seguir em frente. Mas nos caminhos as escolhas são uma constante e, na etapa depois de Oliveira, o Caminho de Finisterra apresenta duas direções para alcançar o mesmo objetivo. Neste caso, uma direção que segue direto a Finisterra, enquanto outra segue até Muxia. Dois marcos, lado a lado, direcionando pontos opostos. Então, qual direção seguir? Para esta pergunta, não conseguimos evitar a única e verdadeira resposta: “A voz do coração!”. É o único GPS de que dispomos. Depois de auscultar o oráculo interior, segui para Muxia. As paisagens são indiscritíveis, sempre com o mar por perto.

A viagem obriga-me a ajustar a minha ideia do mundo à realidade do mundo. E este é o maior desafio, a aventura mais gratificante da viagem. E no caminho procuro sempre honrar a memória dos meus queridos antepassados, foi a única herança que me deixaram e que eu terei de cumprir nos caminhos da vida, porque a mesma só se desenvolve, quando procuramos ser e fazer o que nos completa.No dia em que regresso ao ponto de partida, Santiago de Compostela, fiz o brinde de despedida. E nenhum cavalheiro se afigurou mais avantajado, para cumprir tão elevada e exigente missiva, do que um honesto e fresco “Albaríño das Rias Bajas”, que ainda mais se apresenta acompanhado de umas riquíssimas zamburiñas.

Grata à paciência infinita dos meus leitores, pela oportunidade de escrever estas páginas, pois podia correr o risco de algum dia olhar para trás e não acreditar que algum dia o tinha feito. Assim tenho a prova de que a realidade superou a imaginação.

Comentários