Diário do Alentejo

Aceitas ou rendes-te?

03 de junho 2024 - 12:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto Ana Paula FigueiraIlustração Pedro E. Santos

 

Presumo que não existe ninguém que não goste de ser reconhecido pelo trabalho que faz. A popular teoria das necessidades humanas de Abraham Maslow, enquadrada no estudo do comportamento humano e das forças que o influenciam, consagra a sua quarta camada às “necessidades de estima”, onde reside “a motivação pela aceitação, reconhecimento, respeito, prestígio, autoridade, etc.”, tanto em termos pessoais como profissionais.

Por razões diversas, questiono se hoje existe uma autêntica cultura de reconhecimento. Uma cultura baseada na gratidão, na apreciação e no elogio atribuído, de forma espontânea e regular, onde todos se sintam capazes de participar na genuína demonstração de apreço e nos elogios aos seus trabalhos e criações, para além do “politicamente correcto”, do lado de quem exalta e, por outro lado, do simples deslumbramento dos enaltecidos, caso escolham levar-se demasiado a sério, julgando-se “especialmente especiais”. Ou, então, talvez esta seja apenas mais uma idealização da minha parte.

Apesar de os prémios, reconhecimentos e homenagens públicas serem (cada vez mais) questionáveis, (em particular) na sua origem, eles não deixam de ser importantes, que mais não seja pela dinâmica que geram. Mesmo que os contemplados – ou os familiares dos mesmos, caso ocorram postumamente – tenham consciência de que os reconhecimentos não definem o que cada pessoa é (ou foi), mas antes obedecem, quase na íntegra, a um funcionamento que classificaria como “de ir e de vir”, ao “sabor das marés”, e que “mais vale cair em graça do que ser engraçado”.

No corrente mês de Maio foram notabilizadas publicamente duas pessoas da minha esfera privada. A primeira, tendo falecido em 2013, esteve associado à criação da conhecida ACOS, havendo pertencido sempre aos seus órgãos governativos. Este ano, no âmbito da feira Ovibeja, esta associação entendeu fazer uma homenagem a dirigentes e a funcionários, entretanto falecidos e/ou retirados, cujo trabalho teria merecido distinção positiva. Lamentavelmente, a referida homenagem ficou refém da leitura de um acetato com a lista de nomes seleccionados.

Já no dia 8, um amigo foi recebedor de uma medalha de honra que, tal como é dito no despacho assinado pela ministra da pasta concernente, é “destinada a galardoar as individualidades que, com elevada dedicação ao serviço público, se tenham distinguido pelo prosseguimento de atividades relevantes”.

Se a primeira situação me consternou, a segunda regozijou-me. Por razões de índole pessoal, mas também por representar um ponto de luz.

Poder-se-á dizer que tudo isso é relativo, tanto aos meus juízos, como ao facto de hoje se viverem novos tempos, pejados de novas expectativas, novos desafios e novos valores.

Mais uma vez, esta é tão somente uma opinião e vale apenas por isso.

Quanto aos sinais de transformação… sem entrar em detalhes, diria que os tempos modernos são marcados pelo despontar de uma nova consciência, onde reinam o individualismo, a indiferença e a apatia. Na esteira de Lipovetsky, o mundo surge actualmente como “um grande restaurante self service, onde o ser narcísico explora a escalada da personalização”, desorientado, atordoado e fragilizado, face ao único traço que lhe é claro e imutável: a contínua mudança. Neste contexto, quando confrontado com sinais que parecem querer contrariar esta sociedade da distracção e do hiperconsumo, se ainda não tiver sucumbido, gera-se um ponto de luz.

Que poderá, quiçá, auxiliar na busca do entendimento da lógica polarizada e antagónica que prevalece neste tempo, com vista à criação de um mundo desejavelmente mais cristalino e mais habitável. Será que, tal como escreve Dostoiévski na obra Os Irmãos Karamázov, ao reflectir a propósito da existência ou inexistência de Deus, “Tudo é permitido, […] tudo o que existe, e nada pode ser proibido no futuro”?

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