Diário do Alentejo

Irmão de Assis

08 de fevereiro 2024 -
Foto| DRFoto| DR

Texto Vanessa Schnitzer

No dia em que escrevo a presente crónica celebra-se o Dia Mundial da Religião e não consegui evitar a tentação de homenagear um dos santos mais amados da Igreja Católica, São Francisco de Assis, através da grande obra Irmão de Assis, Uma Vida Que Permanece, de Ignácio Lagarraña.

Diante da marcha imparável que parece encaminhar o mundo para uma nova Idade Média, o chamado tempo das trevas aparece iluminado pela fulgurante imagem de luz do “Irmão de Assis”. É como se, ao mergulhar nas páginas do livro, vamos parar ao delta onde vêm desaguar as dores do mundo. Encontramos aquele lugar “onde se para, se escuta, e se sacia a sede” depois de atravessar o deserto e as distopias que povoam o nosso quotidiano.

Esta obra é uma peregrinação espiritual que atravessa a jornada da vida do herói Francisco de Assis, um protagonista improvável, que persegue um caminho ainda mais improvável, norteado pela reverência à “Dama Pobreza”, colocando em causa os critérios de habilitação à liderança das grandes transformações históricas.

Com recurso a uma linguagem emocionante, somos conduzidos nesta obra para o interior de uma apaixonante viagem transformadora. Do homem rebelde até ao homem redentor. O homem que sonhara com os prazeres deste mundo, só terá encontrado a verdadeira alegria na mais acérrima pobreza. Ao deixar cair o véu da ilusão, apercebe-se de que nada era real, a não ser Deus, na sua transcendência e plenitude: “Era o homem mais livre do mundo…, nada podia perder porque nada tinha. O seu desejo de libertar-se da correnteza humana em busca de paraísos eternos em resposta aos impulsos mais ancestrais do coração humano: – com tesouras de amor cortámos laços mais doces que nos ligavam a este mundo: a família. Enjaulámos e entregámos à morte a mais terrível fera das selvas humanas: o dinheiro. Contraímos matrimónio indissolúvel com a Rainha Pobreza”.

A palavra Deus é o fio condutor que transforma a vida de Francisco numa narrativa evangélica: “Em nome do Evangelho, transformou-se num viajante incansável para semear palavras de vida eterna em terras de fieis e infiéis”, e norma de vida para o Poverello e seus seguidores, privilegiando uma antropologia existencial e um relacionamento pessoal de entrega e enamoramento profundo, através da palavra que lhe ditava a circunstância, com base na crença de que Deus só se revela aos simples e humildes de coração: “(…) havia aspectos do mistério de Jesus, (….) que se resumem nestas duas palavras ligadas: pobreza-humildade”.

E no caminho das bem-aventuranças somos conduzidos através das inúmeras peripécias de Francisco e de seus companheiros pelos arredores da cidade de Assis, até São João de Latrão, onde se vai apresentar ao Papa, e também ao Egito, onde bravamente pregou pela conversão dos muçulmanos ao Cristianismo. Até que chega o momento em que sofre a desolação: “Começa a noite escura do espírito. Para cúmulo dos males, sob tanto absurdo e escuridão…, há um novo e trágico desdobramento entre o saber e o sentir da fé…, o sentir diz: é tudo mentira. O saber diz: É tudo verdade”. Por esta agonia, passou Francisco. Mas é na mais profunda desolação que se encontra a mais elevada consolação: as almas submetidas a esta terrível catarse, jamais sucumbem…, e saem da noite transformados em astros incandescentes. E assim, Francisco aparece-nos como um ser divinizado, um prelúdio do homem do paraíso.

A vida e obra de Francisco configuram uma parábola poderosa. E por mais sombrios que se revelem os tempos, é possível resgatar os ares de céu e os sabores de eternidade. Por estas e outras razões, há mais de oito séculos que os filhos do Poverello são estimados fora e dentro da Igreja e por Ela enviados como “frades do povo ao coração das massas”.

“Quem recebe tudo não se sente com direito a nada. Não exige nada. Não reclama de nada. Pelo contrário, agradece tudo. A gratidão é o primeiro fruto da pobreza. O irmão foi como a amendoeira que se abre em flor para receber com prazer e gratidão, a vida e o calor. Mas, se o sol se oculta, não se queixa. Não há violência. Esse é o segundo fruto da pobreza: a paz, fruto que tem gosto de doçura”.

Comentários