Diário do Alentejo

Olhar, ser olhado e olhar-se

06 de fevereiro 2024 - 08:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto Ana Paula FigueiraIlustração Pedro E. Santos

 

Sentia-se perdida naquela interminável reunião, saturada de desacertos e de palavras esvaziadas de sentido. Onde o diálogo servia muito mais para ostentar pseudo-eloquências do que para criar pontes que facilitassem ultrapassar as diferenças e os prejuízos decorrentes dessas inconsonâncias.

A experiência dizia-lhe que existiam fortes probabilidades de, no final daquela enfadonha discussão, a solução passar tão-só pelo usual e suficiente “sem fazer muitas ondas”, pelo fácil e pretensamente “democrático”, sustentado por um servir a todos e em prol de um bem maior – apesar de não se conseguir perceber, de facto, qual a dimensão desse bem maior.

Face a isto e a mais um conjunto de paradoxos que sentia e que ainda não havia conseguido explicar, nem sequer a ela própria, poderia ter reagido de diversas maneiras. Naquele momento, pensou que aquilo era uma réplica, numa escala mais pequena, do que via acontecer em fóruns de grande responsabilidade governativa do País, tantas vezes televisionados, e que dificilmente haveria volta a dar. A repetida constatação da impossibilidade de aquele tipo de cenário vir a constituir-se como uma efectiva oportunidade de mudança e de fazer diferente, frustrava-a. Mas, em tal caso, tendo optado pela participação, reviu-se numa frase que leu algures: “Fizeste o melhor que sabias. Perdoa-te!”

Este pensamento devolveu-lhe alguma serenidade. Afinal, a vida é feita de altos e de baixos, de momentos de felicidade e de satisfação, mas também de horas, minutos e segundos onde prevalecem os sentimentos mais desagradáveis, de entre os quais, a frustração. Porém, vendo o lado positivo da situação, experienciar esta amálgama de sensações significava que estaria a viver na plenitude. Faltava-lhe apenas continuar a refinar a forma como convivia com as vivências menos boas.

Enquanto fazia estas reflexões, observava as pessoas. Isso permitia-lhe reconhecer cada um dos subtis significados que se incorporam num simples gesto. Este exercício fascinava-a. Lá estava “o lógico”, sempre a analisar tudo muito bem, destacando-se o seu perfeccionismo; “o comandante”, claro, a respirar liderança; depois, “o animador”, sempre com um sorriso no rosto e tendencialmente mais tolerante; “o mediador”, idealista, discreto, compreensivo e empático, fiel ao propósito de que é possível tornar o mundo um sítio melhor para se viver; e muitos “provedores ou servidores compassivos”, apesar de não se saber muito bem para que lado cada um deles orientaria, naquele dia em particular, a sua “moral”…A dada altura, o seu nome é proferido em voz alta. Isso fê-la acordar do torpor em que se instalara. Estavam a dar-lhe os parabéns por uma determinada actividade em que se havia destacado. Surpreendida, agradeceu. Independentemente da conveniência ou da impertinência que aquele elogio carregava, entendeu aceitá-lo. Mais por delicadeza e por se sentir orgulhosa com o seu feito, do que por vaidade. A bem da verdade, “se o autor não se emociona com a sua própria criação, dificilmente pode esperar que outros o façam”.

Acreditava que aquela sua posição não teria sido percebível. Não pretendia que fosse. Também, isso não tinha qualquer interesse para aquelas pessoas. Com excepção dela própria, mais preocupada com a opinião que tinha da sua própria pessoa, do que com o que os outros pudessem pensar dela.O que a remeteu, no imediato, para outro raciocínio: lembrou-se que quando somos fotografados e vemos as fotografias, gostamos ou não gostamos. Se gostamos, é sinal de que nos “saímos bem” e que a fotografia reflecte a imagem que temos de nós próprios ou o (um dos) nosso melhor lado; se nos “saímos mal”, significa que aquela imagem não corresponde à que fazemos da nossa pessoa e/ou que fomos apanhados num mau momento. Sabia que a fotogenia estava para além da estética e que também se pode aprender a explorar os melhores ângulos de cada um, etc. etc.. Apesar de já ter sido fotografada muitas vezes e por muitas pessoas, enquadrava-se naquele grupo cujo resultado raramente a seduzia. Talvez pela razão de nunca ter decidido explorar o mistério da fotogenia e achar que a fotografia, mesmo espontânea, para além da beleza e da estética, deveria expressar sentimentos. Verdadeiros. E isso não lhe parecia ser, nem fácil de apanhar num “disparo”, numa qualquer circunstância, nem tarefa para qualquer “lente”.

Isto valia também para o facto de serem possíveis inúmeras interpretações em relação a cada um – tantas quantas as pessoas em presença – quando se comunica com alguém. Dificilmente o que cada um é, na realidade, é coincidente com aquilo que acredita ser, com o que os outros gostariam que fosse, com o que supõe que os outros pensam que é, com aquilo que os outros querem que seja, com o que gostaria que os outros acreditassem que é, com o que crê que os outros gostariam que fosse e, por fim, com o que os outros pensam que se considera ser.

Enquanto isto, o palavreado de enaltecimento terminara. Na sua cabeça, todavia, ecoavam as palavras de Chaplin: “Creio que não se pode fazer nada de grande na vida se não se fizer representar o personagem que existe dentro de cada um de nós”.

Levantou-se e, a sorrir, voltou a agradecer.

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