Diário do Alentejo

“O conto faz-se na boca”

30 de janeiro 2024 - 12:00
Foto | Vitorino CoragemFoto | Vitorino Coragem

Nasceu em Évora, viveu a infância no centro histórico, o que, conforme refere, lhe possibilitou viver numa comunidade de proximidade. A casa ficava por cima da primeira escola. O pai trabalhava na universidade da cidade e os espaços daquela instituição de ensino superior eram palco de brincar. E a continuação da brincadeira naquele espaço académico valeu- -lhe uma licenciatura em Educação de Infância, complementada, mais tarde, com uma pós-graduação em Livro Infantil, realizada na Universidade Católica Portuguesa.

Diz gostar de trabalhar com grupos em continuidade, pela relação que se estabelece entre as pessoas. E foi em grupo que participou na implementação das primeiras nove bibliotecas escolares de Cabo Verde, alocada à formação de professores. Também em grupo, e em Moçambique, integrou um projeto de construção de pequenas bibliotecas itinerantes comunitárias com jovens mães.

Sobre a sua profissão, afirma que lhe permite viajar, conhecer lugares e contactar com diversos contextos que lhe revelam diferentes arestas da sua matéria--prima – a palavra. E já viajou por quatro continentes, mas foi em Portugal que encontrou lugares de uma riqueza incrível.

“As minhas ‘medalhas’ são feitas de vento e estão penduradas no avesso do peito, atribuídas pelas palavras de ouvidos generosos e de uma confiança, conquistada”.

Eis Margarida Junça, mais conhecida no universo da palavra contada por Bru Junça, na primeira pessoa!

 

Como é que a Margarida se torna Bru Junça?

Como a maioria dos alentejanos, Bru é alcunha. Nada há de artístico. Junça é o meu apelido de família. Vem da Vidigueira, terra do meu avô paterno.

 

Quando e como surgiu o gosto pela arte ligada à palavra?

Começa pelo ouvido. Ouvi contar histórias, cantar, rezar, conversar e estar, em diversos contextos, através da palavra. A cozinha é um belo exemplo, é um lugar de encontro e passagem de tradições, entre mãos ocupadas. Não só o ir fazendo uma receita em voz alta, mas as conversas que surgem ao redor da mesa, como o próprio ato de estar à mesa. A minha avó materna tinha a rima pronta na ponta da língua. A rima é empática. Contava-me estórias da aldeia onde nascera, de gente que eu não conhecia, mas com tal verdade que, mais tarde, quando encontrei algumas dessas histórias, “catalogadas” como contos tradicionais, fiquei surpresa. Entendi o poder que os contos têm em se agarrarem à pele e como são maleáveis, capazes de se ajustarem a sotaques, geografias e, também, capazes de revelarem uma cultura, sem nunca perderem um marco individual e, por isso, único. Uma das coisas que ainda gosto é adormecer a ouvir pessoas a conversar. As palavras embalam. Na universidade descobri o livro- -álbum e aí nasce o interesse e o trabalho em torno deste objeto.

 

Como se define Bru Junça enquanto artista da palavra?

Sou educadora de infâncias, mediadora de leitura e contadora de histórias. Dentro deste trabalho construo livros de pano como uma forma de mediar textos da tradição oral. Não sou escritora, de todo. Apenas escrevo postais aos amigos, listas de compras e notas. Talvez a autora dos livros da marca “Conto por Ponto” seja o termo mais correto. São livros artesanais.

 

Contar histórias, jogar com as emoções alheias, é um dom ou um fruto do trabalho?

Primeiramente, parte de uma forma de ser e de estar na vida. Aquilo que se recebeu, o gosto por conversar, ter curiosidade por tudo o que nos rodeia, o interesse em valorizar um património individual que toca o coletivo. A profissão de contador de histórias é algo recente na nossa sociedade. Na infância dos meus pais e dos meus avós, o contador de histórias era a pessoa a quem lhe era atribuído esse papel dentro da comunidade, por ser o detentor de um repertório e por o partilhar. Contudo, ainda hoje, dentro das famílias, existe essa figura. É comum ouvir frases como: “O meu avô é que sabia essas coisas todas” ou “O meu pai punha-nos ao colo para não termos medo e começava a contar histórias”. A profissionalização e a ocupação de outros lugares para contar faz surgir um lado mais performativo. Mas, nada se faz sem trabalho. O repertório é fruto de uma pesquisa, assimilação e experimentação. O conto faz-se na boca.

 

Consegue partilhar as emoções vividas, enquanto contadora, durante uma sessão de narração oral?

Trabalhar com a palavra é esculpir o efémero. Nenhuma sessão ou conto se repetem. Aprendi que temos de tocar o outro, mas não o podemos deixar cair. Não há um “jogar” com as emoções, só que os contos têm poder. Os contos são capazes de questionar e materializar perguntas e respostas, porque, simbolicamente, tocam arquétipos da condição humana. Para uma sessão acontecer são precisas três coisas: o contador, o conto e o escutador – os três pontos que definem um plano de encontro efetivo.

 

Quais as principais fontes de inspiração de Bru Junça?

Os “meus”, a minha raiz geográfica e emocional e um subconsciente coletivo que se acede através da intuição.

 

Que papel desempenha o Alentejo no seu percurso artístico?

É o meu berço. O lugar onde recebi a minha língua-mãe, impressa de uma quantidade de informação cultural que moldou a pessoa e a profissional que sou, e pela qual me expresso.

 

Algumas histórias curiosas vivenciadas ao longo do percurso ligado à arte de contar?

Há sempre estórias das histórias. Em Moçambique, numa escola, ao entrar numa sala de aula com 70 alunos, um professor pediu-me para esperar. Passados uns minutos, chega com uma lâmpada e enrosca-a no candeeiro. Faz-se luz. Ao terminar a sessão, tira-a. Não esqueço este gesto de deferência para com o ato de “tomar a palavra”.

 

O que anda Bru Junça a desenvolver neste momento?

Continuo a desenvolver sessões em diferentes contextos. Destaco o “Trago uma História no Bolso” que, em parceria com Patrícia Azevedo Godinho, parte do lugar universal que é o bolso e da premissa de que todos temos uma história para contar, como se fosse um pequeno objeto que guardamos vida fora. Objetos pessoais, pequenos patrimónios íntimos que tocam o património coletivo. Este trabalho pode ser encontrado nas plataformas digitais sob a forma de podcast: “Objectos de Viva Voz”. “Vinho a Nós” é um trabalho em parceria com Ana Lage, onde, em sessões de contos, damos voz a um património oral ligado ao vinho e à vinha. Sessões que acontecem em casas vitivinícolas, adegas, cooperativas, eventos privados em parceria com bibliotecas, museus ou outras entidades.

 

Como foi a pandemia vivida sob a perspetiva de uma contadora de histórias?

A pandemia deixou visíveis as fragilidades e as dificuldades de quem vive das artes, em Portugal. Contar histórias é um trabalho “invisível”. Percorremos zonas do interior que estão muito esquecidas, palmilhamos quilómetros para chegar a escolas, lares e a aldeias onde bibliotecas resistem e insistem num trabalho social e fundamental, de proximidade. Carregamos malas de livros e contos na boca para partilhar com quem está, tantas vezes, no café, no largo, na igreja, na mercearia ou no quintal de alguém que, generosamente, nos abre a porta. Andar de transportes públicos para o interior é, por si só, uma aventura. Mas há sempre algo que desvanece o cansaço, quando alguém pergunta: “Quando voltam?”. Na pandemia, quase todo este trabalho ficou suspenso. Não nego as vantagens do digital, mas o “olho no olho” é essencial.

 

E foi em contexto de pandemia que surgiu o projeto educativo “#estudoemcasa”. Como foi participar nesta iniciativa da RTP?

O “Estudo em Casa” surgiu inesperadamente. Aceitei, com receio. Nada sabia do meio televisivo, mas fui consciente das premissas do meu trabalho. Sabia que televisão é uma grande janela, e tinha a oportunidade de divulgar o trabalho que há muito se faz em prol do livro, da leitura e das pessoas. Dignificar o trabalho do contador de histórias. Desmistificar a ideia de que andamos com uns “livrinhos” a contar “historinhas”. Levei autores portugueses contemporâneos e “esquecidos”, recorrendo a diferentes tipos de texto e tipologias de livros. Procurei divulgar pequenas editoras nacionais e encontros de referência em Portugal, ligados à narração oral e à promoção da leitura e do livro infantojuvenil. Era tudo novo, não havia edição de imagem e, apesar dos erros, acredito que o essencial passou – o livro e os textos. Jamais esquecerei o silêncio das viagens até Lisboa com uma autorização para circular fora do meu concelho de residência. Nunca mais ouvi ovelhas a balir na A2, nem vi Lisboa sem aviões a sobrevoar a cidade.

 

Que sonhos e ambições artísticas moram em Bru Junça?

Nas orientações curriculares para o pré-escolar tenho uma frase de S. Francisco de Assis: “Que Deus te dê coragem para mudar aquilo que pode ser mudado. Que Deus te dê paciência para aceitar aquilo que não pode ser mudado. E que Deus te dê inteligência para distinguir uma coisa da outra”.

 

O que está na manga?

Quando ouço essa pergunta, lembro-me sempre da minha avó. Ela guardava o lencinho de assoar na manga arregaçada, em sinal de trabalho. E eu assim estou, de mangas arregaçadas, trabalhando.

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