Diário do Alentejo

“Nas palavras que o Papa Francisco nos dirigiu, ele refere que ‘o canto é beleza e gosto pela vida’”

24 de janeiro 2024 - 08:00

Texto | Luís Miguel Ricardo

 

Nasceu em Lisboa, em 1974, e viveu em Loures até 1992. O seu primeiro contacto com o universo da música aconteceu aos seis anos quando integrou um coro paroquial. Dez anos mais tarde ingressou no Instituto Gregoriano de Lisboa, percurso interrompido com a mudança para Coimbra, para estudar Economia. Interrompido em Lisboa, mas continuado na cidade dos estudantes, chegando a integrar o coro misto da universidade e o Orfeão Académico de Coimbra. Também durante este período estudou canto e frequentou o Curso Nacional de Música Litúrgica, na vertente de direção coral.

 

Em 1996, refere ter tomado uma das decisões mais difíceis da sua vida: abandonar a licenciatura em Economia para ingressar no curso de Professores de Educação Musical, em Beja. E foi pela capital baixo-alentejana que frequentou, paralelamente ao curso superior, o Conservatório Regional do Baixo Alentejo, estudando canto, formação musical e coro, e, onde mais tarde, durante o segundo ano da licenciatura, se veio a tornar professora, mantendo-se na entidade até 2008.

Terminada a licenciatura, e volvidos vários anos letivos a lecionar educação musical nas escolas do ensino básico do Alentejo, começou a ter dificuldades de colocação em horários completos e decidiu, em 2011, realizar uma especialização noutra área de formação, concluindo, quatro anos depois, a formação em Educação Especial, área escolar que abraçou em 2017, num abraço que se mantém até à atualidade, apesar de assumir que é na música que se sente mais realizada. E foi nesta valência que participou na criação de dois coros: os Pequenos Cantores de Santa Maria, em Loures, e o Coro Juvenil do Carmo. E foi nesta valência que executou obras musicais de grande relevo. E foi nesta valência que trabalhou com grandes maestros e compositores portugueses.

 

Eis Helena Almeida, a maestrina do Coro Juvenil do Carmo, na primeira pessoa.

 

Quando e como surgiu o gosto pela música?

Sempre me lembro de ter algum contacto com a música. Essa experiência vem, essencialmente, da minha participação em coros. Na zona de Lisboa, a atividade coral é intensa e, por várias vezes, o coro que eu integrava foi convidado a participar em iniciativas, com outros coros, de grande dimensão. Lembro-me de com 12 anos ter interpretado uma obra do cónego Ferreira dos Santos, no Mosteiro dos Jerónimos, com um coro de cerca de 400 vozes e uma orquestra. Para uma criança, naqueles tempos, era uma experiência inolvidável. E outras do género se repetiram, com a presença do Presidente da República e de todo o corpo diplomático, a missa com o Papa São João Paulo II, no estádio do Restelo. Todas estas vivências na minha infância e adolescência influenciaram o meu interesse pela música, sobretudo, coral.

 Como foi o percurso até chegar a maestrina?

Não me considero uma verdadeira maestrina, na verdadeira aceção da palavra, uma vez que não tenho licenciatura em Direção Coral. Ainda antes de qualquer formação mais específica, comecei a dirigir pequenos grupos. Concluí o curso de Música Litúrgica e fiz alguns workshops e ações de formação. Aprendi, sobretudo, com aqueles maestros com quem cantei e, muito do que sei, tem sido por autoformação. Sempre que posso procuro formação, atualmente um pouco mais facilitada pelas vantagens das tecnologias, uma vez que o facto de ter optado por me instalar em Beja condicionou o meu desenvolvimento formativo nesta área. Ultimamente, tenho tido a oportunidade de trabalhar com o maestro Altamiro Bernardes, que tem uma grande carreira internacional.

  Que papel desempenha o Alentejo na arte de Helena Almeida?

O Alentejo acolheu-me muito bem e eu sinto-me uma alentejana de gema, e refiro-me sempre ao “meu” Alentejo. O Alentejo tem uma rica tradição cultural e artística, sobretudo, na área da música, que, ao longo destes 27 anos, tem influenciado a minha expressão musical e a do coro. Onde quer que o coro se apresente, faço sempre questão de levar uma música de cariz tradicional do Baixo Alentejo, para assim também deixar bem vincada a nossa raiz e as nossas tradições.

 Como é dirigir “uma multidão de vozes” focadas num mesmo objetivo?

Dirigir uma “multidão de vozes” é muito desafiador, sobretudo, quando se trata de um grupo tão heterogéneo, com idades e vivências musicais bem distintas. É preciso promover a diversidade e a inclusão, escutar cada uma das vozes e trabalhá-las para que resulte uma harmonia coesa e que cada um sinta que faz parte de um todo. E começa logo com a escolha de repertório, pois tem de agradar a quem o interpreta e tem de ter um significado emocional de forma a aumentar a autenticidade e o empenho na execução. É muito gratificante ver o resultado dum trabalho que às vezes é tão difícil e que parece que não vai dar em nada. São muitos os momentos em que me emociono em pleno concerto ou celebração litúrgica.

 

Coro Juvenil do Carmo, Congresso de Pueri Cantores, Roma 2023. Como foi a experiência?

A participação no congresso, em Roma, foi o culminar de todo um trabalho que temos vindo a desenvolver, sobretudo, na liturgia. Foram dias muito intensos: horários rígidos, várias atividades integradas no congresso, filas para passar a segurança e entrar para a audiência papal e missa de Ano Novo, e a responsabilidade de sermos os embaixadores de Portugal no congresso. Poder partilhar a música, linguagem universal, e celebrar a mesma fé com crianças de 96 coros de todos os cantos do mundo foi uma experiência que ficará marcada para sempre nas nossas vidas e que será um marco na história do coro. Nas palavras que o Papa Francisco nos dirigiu, ele refere que “o canto é beleza e gosto pela vida”. E, ainda, “que os coros ajudam as comunidades a rezar e a abrir o coração a Deus: cantar é um ato de amor e, ao fazê-lo, rezamos com palavras e com música, com o coração e com a voz, com a devoção e com a arte”. É esta fé que queremos celebrar com arte, para maior glória de Deus.

A minha maior ambição é poder continuar a levar a cabo este trabalho que tenho desenvolvido com o coro juvenil. Acredito que Deus me deu esta missão para pôr a render os meus talentos aqui, no Alentejo, numa terra com pouca prática cristã mas com gente de fé”.

Tratando-se de um coro juvenil, como é gerir tantas emoções em contextos tão distintos como aqueles que encontram “fora de portas”?

O ser humano é muito complexo. As relações humanas são difíceis de gerir, sobretudo, quando estamos num ambiente totalmente novo, longe de casa e até da família, como foi o caso de alguns elementos em Itália. Posso-me considerar com sorte porque o grupo aceita muito bem as minhas orientações e considera-me a líder, a quem tem de “prestar contas” ou pedir autorização para algo que saia do esquema, mesmo aqueles que nestas atividades estão acompanhados pelos pais. Também sou humana, não sou uma máquina, tenho sentimentos, emoções e momentos menos bons que às vezes se refletem nas próprias relações entre o grupo. Procuro sempre criar um ambiente familiar que promova a expressão emocional, o apoio mútuo e a aceitação, contribuindo, significativamente, para o bem--estar emocional de todos os membros. E, como na família, é preciso amar e perdoar.

 E quanto à gestão de recursos logísticos e, sobretudo, financeiros?

Durante 24 anos o coro existia como um grupo sem estatuto associativo e dependia da paróquia para a obtenção de alguns fundos de entidades e da autarquia, aos quais se acrescentava, essencialmente, a boa vontade das famílias, a generosidade da comunidade e alguns apoios externos. Com o crescimento do coro, e o aumento do número de iniciativas, decidiu constituir-se o coro como associação, de forma a viabilizar, no futuro, outras formas de financiamento, sobretudo, apoios institucionais cabimentados para associações de índole artístico e cultura.

 

Como está o “estado da arte” em Portugal e no Alentejo?

Apesar de sermos um país com grandes tradições artísticas, sobretudo, na música, onde vários se têm destacado, infelizmente ainda é muito difícil subsistir unicamente através da música. Quando em 1996 decidi enveredar pela área musical, a minha mãe dizia: “Estou vencida, mas não estou convencida”, porque a sua maior preocupação era como é que eu ia sustentar-me a mim e a uma família só com a vertente artística. Foi assim que optei pelo ensino da música, mas que também se veio a revelar um campo com pouco alcance de empregabilidade. A arte ainda é vista como um parceiro menos nobre das profissões em Portugal. Tenho dois exemplos em casa: quando o meu filho mais velho decidiu seguir os estudos musicais superiores, eu dei-lhe o meu apoio, mas não vou esquecer as palavras do pai de uma colega dele que me disse: “Pensei que estudar música fosse um hobby”, desvalorizando esta opção. O meu filho mais novo tem como objetivo profissional enveredar pela carreira de maestro de orquestra. Um caminho longo e sinuoso, mas que nós vamos apoiar incondicionalmente. Temos de valorizar o que de bom há no nosso país, temos de dar mais reconhecimento à música e aos bons músicos. A cultura tem de fazer parte integrante da nossa sociedade e a música, em especial, terá de ter um lugar mais importante na educação. Haja quem perceba que o desenvolvimento cultural das crianças vai ajudar no seu desenvolvimento intelectual e melhorar os seus resultados a vários níveis. Vários estudos provam que o ensino da música coopera no ensino da matemática, das línguas, desenvolve a capacidade de foco e de atenção e melhora as próprias relações pessoais.

 Quais os sonhos e ambições artísticas de Helena Almeida?

Já não almejo grandes voos. A minha maior ambição é poder continuar a levar a cabo este trabalho que tenho desenvolvido com o coro juvenil. Acredito que Deus me deu esta missão para pôr a render os meus talentos aqui, no Alentejo, numa terra com pouca prática cristã mas com gente de fé. Procuro aliar a música e a minha arte com a evangelização. Que Deus me ajude a poder concretizar esta missão e que, através dela, possa ajudar as crianças e os jovens a serem melhores cidadãos, que procurem construir uma sociedade mais fraterna e mais humana. Acredito que a música é um veículo de excelência para alcançar estes objetivos. Alcançar esses sonhos envolve dedicação, persistência e uma abordagem inovadora. É uma satisfação poder explorar o próprio potencial criativo e, ao mesmo tempo, contribuir para a sociedade de maneira significativa.

 O que está na manga?

Neste ano, mais concretamente em novembro, o coro comemora 25 anos de existência. Todo o nosso plano de atividades se direciona para essas comemorações, que se irão prolongar por vários meses. Para já, em abril, vamos levar a cabo o 2.º Encontro de Coros Juvenis de Beja, que esperamos seja um sucesso, à semelhança da sua primeira edição. É preciso mexer a cidade culturalmente e trazer jovens para conhecer esta bonita terra. Depois, em novembro, haverá uma surpresa, mas ainda não posso revelar. Ao longo deste ano vamos também estar envolvidos na preparação de um outro grande projeto que será apresentado, oficialmente, em janeiro de 2025, mas sobre o qual deixo aqui a informação em primeira mão: em julho de 2025 o coro vai participar no Congresso Internacional de Pueri Cantores, em Munique.

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