Diário do Alentejo

Os Diários de Lanzarote

14 de janeiro 2024 - 08:00
Segunda-feira, 2 de outubro de 2023

João de Carvalho

 

Depois da correria dos souvenirs, pedi ao Juanjo que me acompanhasse numa última visita guiada pela Casa e pela Biblioteca. O pedido foi aceite com entusiasmo. Dessa última visita, recordo todo o percurso feito, assim como toda a dedicação do Juanjo. Mas novamente as banalidades: Saramago deu uma hora eterna à sua casa. Todos os relógios de casa estão parados nas quatro da tarde, hora em que José Saramago conheceu Pilar del Río, o amor da sua vida. Aqui, há de facto romantismo, mas imaginem, se romantizo a maior das banalidades, como reajo eu à romantização do romantismo. Aquela curiosidade foi avassaladora para as minhas emoções. Fiquei defronte de um dos relógios da Casa durante largos segundos. E ali teria ficado uma eternidade, a sentir-me leve como os ponteiros de um relógio, apesar de esses carregarem o peso do tempo. Naquele caso era diferente, não existia tempo, ou melhor, existia apenas a leve e definitiva eternidade das quatro da tarde. O Juanjo interrompeu-me aquele meditar diante do relógio. Chegava a hora certa de despedir-me de Casa: sentei-me durante uns momentos no centro do quintal de José Saramago. Depois levantei-me e deixei a pedra do centro do universo para trás. Tal como os ponteiros de um relógio, também a semana deu a volta. Era já segunda-feira, o dia em que esta aventura, há uma semana atrás, havia começado. Precisava de encarar os voos de regresso e fi-lo depois de um almoço com o Juanjo. Despedi-me, então, do melhor anfitrião da ilha de Lanzarote. Em pleno aeroporto, um abraço e todas as palavras de gratidão foram insuficientes para o que pretendia transmitir: mostrar-me infinitamente grato. Quer nos números, quer nas palavras, quer nos sentimentos, o infinito jaz sempre impossível.

Em Madrid, ao contrário do que sucedera na semana anterior, a escala passou rapidamente. O relógio sem ponteiros do meu telemóvel cavalgava numa fúria do tempo. E ainda bem, estava desejoso de aterrar em Lisboa, de dar por concluída a aventura mais bonita que tivera o prazer de vivenciar. Cheguei a Lisboa perto da meia-noite. E cheguei a casa, em Arroios, perto da uma da manhã. Na Casa de Saramago, apesar do fuso horário de Lanzarote ser igual ao de Lisboa, eram quatro da tarde. A hora do amor: quatro da tarde. Se Gregor Samsa ainda estivesse sob os ares da Casa de Saramago, decerto estaria apaixonado. Mas por onde andaria Gregor Samsa às quatro da tarde?

Em Arroios, arrotei. Um arroto azedo e alto invadiu-me a boca e o quarto. Senti o bafo quente do arroto a atravessar-me as narinas. Interpretei tal manifestação corporal como o sinal de que eu estava definitiva e completamente de volta à minha realidade. Na lucidez dos prazeres, há momentos em que o peso de existir se torna mais leve. Momentos que, mesmo que às vezes quebrados a meio, podem durar uma semana inteira, uma viagem inteira. Mas bem, a fantasia acabara. Além da realidade, algo que nunca me havia deixado completamente durante a viagem também voltara, talvez a doença. Ou talvez a doença e a realidade se fundissem na mesma coisa! Mas eu sentia, algo estava ali, em lado nenhum. Mas onde, afinal? E o quê? A vaguear pelos ares do quarto, por vezes embatendo contra a secretária, outras vezes possuindo-me a mim, eis que sim, estava ali, em todo o lado ao mesmo tempo e mais pesado do que nunca: ainda que oco, o maior dos pesos: a existência.

 

Nota: O narrador chegou à conclusão de que no diário de uma viagem é extremamente difícil, para não dizer impossível, fugir ao roteiro cronológico dos acontecimentos. E é irónico. Apesar dessa tentativa de fuga, um dos fios condutores destes textos são as horas. Ora, as horas são tudo o que há de cronológico. Ainda assim, este viajante tentou ao máximo complementar o roteiro com trivialidades e curiosidades interessantes, de forma a tornar mais atrativa a leitura destes diários. O viajante despede-se assim e assina, apesar de hoje ser uma pessoa diferente, com o mesmo nome que tinha no início da viagem. João de Carvalho : )

“Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”. – Viagem a Portugal, José Saramago

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