João de Carvalho
Quase nada. Fui à praia de Famara e passei por Teguise. Olhei a Montaña Blanca a partir de casa. Depois sosseguei. Mas estar sossegado, apesar de compreendido como fazer nada, não corresponde a essa compreensão. Fiz alguma coisa: sosseguei. Concederam-me o privilégio de passar algum tempo sozinho na biblioteca de Saramago. Ao ouvir-lhe o silêncio, lembrei-me da transcendência da pedra negra. A biblioteca e a pedra negra são semelhantes, sabe Deus no quê. Sentado sob uma meditação de pensares, tentei observar minuciosamente todas as obras daquela casa de livros. Mas era impossível. A coleção de livros de José Saramago e Pilar del Río é extensíssima: cerca de quinze mil. E todos aqueles livros residiam na cave onde eu estava hospedado no momento. Foi no dia em que os livros ultrapassaram espacialmente a cave que se decidiu proceder à construção da biblioteca. Os pensamentos discorriam-me no cérebro. Houve um que se destacou. Ao observar a imensidão de livros, lembrei-me de Almada Negreiros e da sua famosa confissão: “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente outras maneiras de uma pessoa se salvar, senão… estou perdido”. Quão importante é a escolha de cada leitura que se faz! Devemos ser meticulosos nessa escolha, para que não percamos vida. Um livro assemelha-se a uma alma que nos acompanha por um determinado período de tempo, retirando-nos esse mesmo tempo. Só os bons livros ocultam essa perda, fazendo-nos ganhar algo mais precioso do que a vida em si.
Pode ganhar-se tanto no sossego. Cheguei ao final do dia estafado. A estadia na Casa de Saramago demonstrava-se exigente para as emoções. E, por consequência das emoções se alastrarem ao físico, estava tão cansado como aqueles peregrinos que se atrevem a subir montanhas durante dias seguidos. Nessa estafa, liguei o computador e vi, entre os cortes de um stream, o jogo do Sporting. Depois de estar a ganhar, o árbitro expulsou um dos nossos, pelo que nos dificultou o jogo. Ainda assim, marcámos três golos e o adversário apenas dois. Foi bonito porque o nosso terceiro golo foi em cima do fim do jogo, e de penálti! Alcançámos o primeiro lugar. De súbito, a Casa de Saramago metamorfoseou-se: era toda verde naquele momento.