Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: Vida oblíqua

25 de dezembro 2023 - 21:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto | Ana Paula Figueira 

 

Tenho a sensação de que as coisas mais bonitas que escrevi até hoje não terão conseguido interessar, sobremodo, muitas pessoas. Mea culpa: por certo, porque não as consegui escrever bem. E talvez, também, pelo facto de os temas fundamentais ao ser humano serem eternamente os mesmos e outras pessoas, antes de mim e mais talentosas do que eu, já os haverem identificado e escrito sobre eles. Na verdade, algumas dessas pessoas souberam fazê-lo magnificamente.

Se considerarmos estas múltiplas abordagens, ao longo dos anos, traduzidas em diversas formas de arte, de acesso público, que influenciam e inspiram o modo como cada um de nós vê o mundo, sentir-me-ia levada a afirmar que os clichés (“imagem ou ideia muito repetida ou estereotipada; chavão”) estão por todo o lado.

Mas este raciocínio não porá em causa, cada vez mais, a designada “obra original”? Afinal, o que é que pode surpreender e prender a atenção dos leitores (preferencialmente vistos por perfis e por tipos)?Recordo, por um lado, um dos “meus” magníficos, José de Almada Negreiros, que, em 1921, notou uma necessidade, e tanto sobre ela, como a propósito do respectivo contexto, escreveu: “Nós não somos do século d’inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d’inventar outra vez as palavras que já foram inventadas”.

Todavia, por outro lado, passados cerca de cem anos, este “novo mundo” é marcado por uma proliferação desenfreada de palavras, por uma saturação de palavras, rodeadas de barulho, prenhes de urgência e esvaziadas de sentido. Na verdade, as palavras não estão a conseguir ser mais do que ruídos bloqueadores do silêncio indispensável para a reflexão. Para muitos, o ruído já é tão insuportável, que optam por recusar esta realidade, isolando-se, na busca de espaços onde as palavras, ainda, conseguem ser “palavras”, com sentido. Mesmo que abrigados em clichés. Vá-se lá saber como e até quando. Saliento que nem sempre a mudança é sinónimo de evolução e, como diria Chico Buarque: “Nem toda a loucura é genial, nem toda a lucidez é velha”.

De volta, então, aos clichés: se partimos do princípio de que, em vez de clichés, falamos de referências, mais ou menos pensadas, que remetem para percursos narrativos, a responsabilidade de quem escreve poderá suavizar-se, permitindo espaço para o aparecimento de textos, mesmo fortuitos, que consigam aportar uma certa novidade e surpresa, enquadrados, desejavelmente, em percursos narrativos inéditos e, dessa maneira, consigam transpor a barreira de ruído que menciono acima.

Bem sei que isto pode parecer confuso e talvez até irrelevante para quem me está a ler neste momento. Para além de ser extremamente ambicioso e improvável para “o comum dos mortais”. Mormente se introduzirmos uma outra – e nada despicienda – variável, nesta “equação”, ou algo que se pode traduzir numa afirmação que ouvi, há anos, alguém expressar publicamente ao referir-se à arte, na sua generalidade, e que me parece muito acertada: “(...) mais do que o seu valor intrínseco, a arte depende sempre de três factores... de uma certa massa crítica que acredite no seu valor, de quem efectivamente acredita no seu valor e da sua envolvente”.

Foi, pois, para o bem e para o mal, com estes pensamentos na cabeça, que comecei a escrever esta crónica. Considerei fazer algo muito previsível: em final de ano, tendem a vir ao de cima sentimentos vários, associados a expectativas, quanto ao que passou, como ao que está para vir.

Pretendi tão-só redigir breves comentários, que possam quiçá incitar, nesta quadra natalícia, a uma outra reflexão. Diria que deverão ser entendidos como meras sugestões ou motivos circunstanciais, com interesse para conversas partilhadas entre amigos e familiares, tendo por base alguns dos “tais” grandes temas da Humanidade. Faço-o, é claro, do meu ponto de vista e fundada em experiências pessoais, vividas durante o ano que agora termina. Ou seja, manifestamente, um cliché!

 

1. Guerrra

 

Tive oportunidade de ver dois grandes filmes relacionados com conflitos bélicos: “A Oeste Nada de Novo”, uma adaptação cinematográfica de “Im Westen nichts Neues”, do alemão Erich Maria  Remarque (2022). Trata-se de um intenso testemunho das atrocidades vividas pelos soldados alemães na I Guerra Mundial, muitos deles adolescentes, impreparados para a luta armada nas trincheiras. Verdadeira “carne para canhão”. Também “Oppenheimer” (2023), dirigido por Christopher Nolan, baseado no livro “American Prometheus, biografia de J. Robert Oppenheimer”, de Kai Bird e Martin J. Sherwin. Para além de facilitar o acompanhamento de diversos aspectos da vida de Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica, também permite que sejam percebidos o conflito interno e o arrependimento que sentiu, ao constatar as potencialidades da arma nuclear que criara e a dimensão da destruição que a mesma gerou nas cidades de Hiroshima e de Nagasaki, no Japão, em 1945.Apesar de nos serem oferecidos, a título de exemplo, estes convites à reflexão, desde Fevereiro de 2022 que convivemos com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, sem que percebamos muito bem se caminhamos, ou não, para uma terceira guerra mundial. Para dar ainda “mais cor ao cenário”, a 7 de Outubro irrompeu o conflito israelo-palestino de 2023 (guerra Israel-Hamas), com consequências imediatas, não somente no Médio Oriente.

 

2. Morte

Em Maio, perdi o meu pai e, em Setembro, uma amiga. Já escrevi sobre isso, sob vários ângulos. Para aqui e agora, “recorro” às palavras de Vergílio Ferreira, que diz de forma sublime: “(...) O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível – morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado”.

 

3. Ser mãe

No ano em que o meu filho fez 30 anos, foi editado mais um livro cuja autoria partilho com António Bagão Félix, o 575+757. Neste livro, a dada altura, ele pergunta-me qual o meu mês favorito, e eu respondo: “O mês em que fui mãe”. Não é mãe quem gera filhos; ser mãe é – como também já me disseram – procurar, todos os dias, ser muito mais, por ser muito menos. E isso é um exercício diário de superação.

 

4. Obra

Já mencionei o livro 575+757, apresentado publicamente a 20 de Junho de 2023, na Biblioteca Municipal de Beja. Ainda no corrente mês será impresso o primeiro, de uma colecção de opúsculos, bilingue, que tem como tema central a viola campaniça e pessoas que, de algum modo, lhe estão associadas. Esta iniciativa está enquadrada no projecto designado “Cante de improviso com viola campaniça”, no âmbito da cátedra em Etnobotânica e Salvaguarda do Património de Origem Vegetal, instituída pela Unesco, no Instituto Politécnico de Beja, em Janeiro de 2023, da qual sou vice-titular. “A única coisa que transcende a existência do ser humano é a sua obra” (Máximo Gorki).

 

5. Desencanto

No último sábado, dia 9 de Dezembro de 2023, foi assinalado o Dia Internacional contra a Corrupção, que coincidiu com o 20.º aniversário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Uncac), declaração que enfatiza a “determinação da nossa comunidade global em combater a corrupção em todas as suas formas, em todo o lado”. Todavia, segundo dados do “Global Progress Report on Sustainable Development Goal 16 Indicators: A Wake-Up Call for Action on Peace, Justice and Inclusion” (United Nations Office on Drugs and Crime, Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights e The United Nations Development Programme), “uma em cada cinco pessoas em todo o mundo afirma ter sido obrigada a pagar um suborno para aceder a um serviço público, [sendo] preocupante o facto de 124 países apresentarem níveis de corrupção estagnados”.

Em Portugal, as comemorações decorreram este ano “com um governo demitido por suspeitas de tráfico de influências envolvendo o chefe de gabinete e o melhor amigo do primeiro-ministro, e com o próprio Presidente da República envolvido num caso suspeito de favorecimento, em resposta a um pedido do seu próprio filho. A informalidade, a lógica de acesso pessoal, a ‘cunha’ e o favorecimento tornaram-se formas corriqueiras de exercício do poder ao mais alto nível”, refere a “Frente Cívica, uma organização da sociedade civil para escrutínio dos poderes públicos” em declaração enviada à agência “Lusa”.

Ora, face a isto, o desencanto dos cidadãos portugueses, traduzido na revolta relativa às instituições democráticas, que os deviam defender de forma séria e responsável, aumenta, assim como o descrédito na política partidária. Este é o terreno ideal para o crescimento de partidos populistas, antipluralistas, com um discurso de unificação, apesar de se estruturarem em torno do princípio da divisão.A democracia está em crise, e não só em Portugal. Já o escrevi num outro local. Será que isso se deve exclusivamente às atitudes e comportamentos dos protagonistas dos partidos, ou será o modelo de democracia – representativa – que se está a esgotar? Temos eleições legislativas marcadas para 10 de Março do próximo ano. Será que não é chegada a altura de se procurar e de se encontrar uma alternativa séria, credível, moderada, mobilizadora de uma franca maioria dos eleitores? Preferencialmente sob a égide de uma metáfora “viva”, que seja parte de um esquema conceptual global, que cristalize uma política e uma filosofia a ela adjacente, e que defina o percurso para o futuro de Portugal.

Votos de boas festas e um excelente ano de 2024.

Comentários