Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: Os caprichos do clima

09 de outubro 2023 - 09:25
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

“(...) Procurando resistir à fúria do vendaval e à escuridão da noite, o corvo Vicente fugiu da barca para terra, fixando-se numa exígua porção de terra na iminência de inundação e desafiando a omnipotência divina (...)”.

(Diário II, Miguel Torga)

 

A seca que afeta todo o território nacional é denunciada pelos rios e ribeiras que, invalidamente, retalham a região. Tempos houve em que as energias pluviáteis configuravam um dom supremo da natureza: consolavam homens e animais, fecundavam hortas e pomares e moviam diligentemente azenhas e moinhos, fosse verão ou inverno. Ainda que, não raras vezes, a partilha de águas de rega degenerasse em conflitos sangrentos. A água era retirada das fontes apenas quando dela se precisava, fazendo-se uso de cântaros, de jumentos arreados com cangalhas e de bilhas de barro que a mantinham fresca em pleno estio. Em contrapartida, as adegas abonadas com as generosas pipas de vinho para dar de beber aos amigos.

Já passou o tempo em que o provérbio contava: “… arderem os montes e secarem as fontes...”, lendária de um sofrido ritual que o povo vivia e sacrificava com naturalidade, apenas dizia respeito ao mês de setembro. Agora não: aplica-se a todos dos meses de verão e também aos de primavera e do próprio outono. Com o problema recorrente da seca, que ganha foros de calamidade por força das alterações climáticas, leva a que os sinos toquem a rebate e se comece a pensar se não será necessário introduzir novas castas mais resistentes ao calor e repensar a localização das vinhas. Falou-se no programa da migração em direção ao norte que a vinha tem conhecido. Sobe-se em latitude e também em altitude com a consequente desertificação do Sul onde, para mal dos nossos pecados, nos situamos.  Deixará de se produzir vinho no Alentejo?

Se pensarmos como chegámos até aqui, não será impossível o exercício. Se atendermos às medidas e estratégias que têm sido adotadas nos últimos quarenta anos ao setor vitivinícola. É de destacar a canibalização do território nacional com as castas ditas estrangeiras, em sacrifício de todo um vasto e valioso património ampelográfico que caracteriza o território nacional; uma riqueza que levou milhares de anos a ser criada – a diversidade intravareital – que serve precisamente para adaptar as ditas castas às mudanças do mundo (do clima, da tecnologia vitícola, do mercado do vinho, das doenças e pragas, etc.) e que é destruída num ápice e nunca mais é recriada. E para quê? Para responder à pulsão imediatista da indústria vitivinícola de colocação dos vinhos no mercado o mais rapidamente possível, manietado pela voracidade consumista, de aculturação pós-moderna, destinado a produzir vinhos massificados na fruta, sem elegância e complexidade. Trilhámos o caminho das tendências, perdendo a ligação às essências, às raízes, que veio marcar o afastamento progressivo da natureza, dos ciclos naturais, das estações. E a culpa é do clima!

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