Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: Tocada por um anjo

09 de outubro 2023 - 09:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto | Ana Paula Figueira

 

Desacostumados da coragemexilados do prazervivemos enrolados em colchas de solidãoaté que o amor deixe o seu alto templo sagradoe entre na nossa visãopara nos libertar.

 

O amor chegae na sua esteira vêm êxtasesvelhas memórias de prazere de dor.Se formos corajosos,o amor atira fora as correntes do medodas nossas almas.

 

Desabituados da nossa timidezcom a onda de luz do amorpassamos a ser corajosose a verque o amor custa tudo o que somose viremos a serque só o amornos liberta.

 

(Maya Angelou in “Sombras Brancas”, Jorge Sousa Braga)

 

Sou cristã, católica, mas não frequento regularmente a Igreja. Já os meus pais, ambos crentes, também não o faziam. Lá por casa acreditava-se na fé traduzida em atitudes cristãs, que se procuravam praticar com todos, entre todos, a todos os momentos da nossa vida. Com vulnerabilidade e imperfeição. Por razões de circunstância pensava-se que os discursos religiosos, feitos por pessoas, se resumiam em excesso a palavras traduzidas, vezes demais, em atitudes pouco cristãs; de modo igual, entendia-se que abundavam frequentadores assíduos dos templos cuja atitude quotidiana, no seu relacionamento com o outro, contrariavam os ensinamentos de Jesus. Nesse seguimento, concluía-se que não seria o facto de comparecer regularmente no templo, para as celebrações, que iria garantir a proximidade com Deus. Não se tratava de falta de compromisso com o Evangelho, pois cada um de nós fazia-o quando o entendia; nem de uma simples e impensada generalização: os meus pais tinham perfeita consciência do perigo de se generalizar, fosse o que fosse e, mormente, assuntos sérios. Tão-só se optou por apostar, em particular, no exemplo.

 

A minha mãe era muito devota a N. Senhora de Fátima. Tinha um gosto especial em visitar o santuário de Fátima e fazia-o, connosco, com regularidade. Para ela, Fátima significava estar em oração, rezar. Poderia ser o “Pai nosso”, a oração principal que Jesus nos ensinou, ou apenas recolher-se para dentro de si e encontrar-se com a Fonte de onde tudo emana. Ouvir e ouvir-se. Em silêncio.

 

Acreditava que a vida plena e eterna em Deus resulta de uma experiência de fé interior – por isso, um mistério – para além do espaço e do tempo, tal como os conhecemos. Algo de um outro mundo. Por se tratar de uma outra e de uma nova criação, concebia a ressurreição como a passagem do estado espiritual-terreno ao estado espiritual-celestial.

 

Apesar de o seu cepticismo ter aumentado ao longo da vida, a minha mãe conseguiu manter uma certa candura alimentada – julgo eu – por aquilo que entendia ser o único meio possível para nos ajudar a construir um mundo melhor: a esperança. Considerava que, na sua entrega à morte, o sacrifício de Cristo era único e suficiente para o perdão dos nossos pecados; assumia que Deus não pretende sacrifícios, mas antes deseja que lutemos pela justiça, pela paz, que sejamos misericordiosos e que tenhamos compaixão e respeito, uns pelos outros.

 

Foi com estes valores – discutíveis, como é evidente – que os meus pais me educaram. E eu sempre os reconheci como os melhores exemplos vivos da sua prática.

 

Supostamente, devido a um certo afastamento da Igreja formal, hierárquica e ritual, que prossegui, passei cerca de meio século de vida sem ter tido a oportunidade de conhecer e de conviver o bastante com alguém que, na hierarquia da Igreja, conseguisse fascinar-me e conquistar a minha admiração, por conseguir incorporar, de forma sublime, a acção messiânica tal como a concebo.

 

Até que um dia, de repente, conheci e comecei a relacionar-me com alguém que havia consagrado a sua vida a Deus e, no desempenho da missão, do ideal e do carisma da “sua” congregação, dirigia um lar de idosos. Nos últimos cinco anos vivi intensamente aquele lugar, com grande parte das pessoas que nele trabalham e com muitas outras pessoas que lá vivem ou viveram. Partilhei com bastantes, inúmeras alegrias, mas também um meu profundo e intenso sofrimento..

 

Esse período permitiu que descobrisse, notadamente, aquela mulher. Era extraordinária a forma como as acções que lhe conhecia, fossem elas quais fossem, revelavam a dignidade dos seus compromissos e a rectidão do seu carácter. Sempre atenta, deveras sagaz e ávida por aprender, procurava melhorar continuamente a forma como dava cumprimento aos seus propósitos e aos seus desígnios. Era uma visionária. Era também uma líder firme, que liderava segundo o coração de Deus, ou seja, sentia-se como um instrumento da Sua vontade, expondo a sua condição de serva, longe do teatro da fama e da competição. Fazia-o com total despreendimento e com uma dedicação exímia e inigualável aos idosos que habitam aquela casa. Defensora acérrima do verbo “cuidar”, preocupava-se com o cuidado ético, personalizado, com os seus aspectos visíveis, sem nunca esquecer os invisíveis, na busca do pleno cumprimento da dignidade humana. Por isso, era a “mãe”, a “Irmã”, o sustentáculo e o porto de abrigo.

 

Um anjo é um mensageiro da Luz! Foi Luz o que esta mulher me revelou, contribuindo para transformar a minha vida.

 

Foi um privilégio privar com ela.

 

Há muito pouco tempo esta mulher deixou de estar fisicamente entre nós. Porém, deixou um legado de inspiração, de diferença que fez nas vidas das pessoas com quem se cruzou. Que a memória deste legado cresça e se perpetue.

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