Diário do Alentejo

Crónica de Vítor Encarnação: Liberdades

24 de abril 2023 - 12:00
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I

Faz de conta que a liberdade é uma mulher. Assim se explica que os homens lhe tenham oferecido cravos e papoilas.

Nesse céu da madrugada esperada, eles eram gaivotas com asas absolutamente felizes. Os homens nem dormiam, abraçavam-na noite e dia com medo que ela fugisse, esse corpo absoluto, tão desejado. Foram juras eternas de amor, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, odes, serenatas, poemas e todas as outras palavras definitivas.

 

Namoraram nas praças, nos jardins, nas ruas. Fizeram planos com as mãos sobre o peito, as gargantas abertas como portas de prisões, os olhos rasos de futuro, os corpos de um e de outro, rijos como cavalos soltos.

 

E depois nasceram filhos e havia certezas. E depois os filhos cresceram e alguém se esqueceu de lhes explicar a história das espingardas a florir nas pontas. E a própria liberdade envelheceu. Os amantes tornaram-se apenas maridos, a chama intensa foi morrendo em toda a celulite do desânimo. Os peitos apontados ao horizonte descaíram, os cabelos são agora restolho de um trigo gasto, as rugas são sonhos afogados na pele. A paixão dos homens esmoreceu.

 

Agora, a liberdade parece ser uma dona de casa a cozinhar para homens com saudades de outras mais velhas.

 

II

Há muito mais adeptos da liberdade do que da responsabilidade. Fossem elas coisas autónomas, distintas, e a escolha seria apenas o fruto de uma preferência, o resultado da autodeterminação do pensamento. Quero uma e não quero a outra, vivo bem com a primeira, convivo mal com a segunda.

O problema fundamental reside na absoluta impossibilidade de as separar. Seja por estratégia, por deformação intelectual, ou mera ingenuidade, por muito que tentemos, numa sociedade justa e equilibrada, numa mente reta e assertiva, isso não é possível, pois quando se cunha uma de um lado, cunha-se a outra do outro lado. Quando nos dão uma, dão-nos a outra, quando conquistamos uma, é-nos entregue a outra.

A liberdade é apetitosa, é uma abstração que se pensa como uma coisa doce, leve, solta, que nos dá independência, concede autonomia, permite o livre arbítrio, promove os direitos. A responsabilidade é aborrecida, é uma concretização do limite, é o peso de termos de decidir, a maçada de termos de pensar nos outros e em tudo o que nos rodeia, o enfado das regras, a chatice de não podermos abusar do nosso ego, o tortuoso caminho dos deveres. Explicar que uma não vive sem a outra, que uma não nos permite viver sem a outra, é o desafio de pais, de professores, de políticos. Não há moedas de uma só face. A liberdade é a coisa sonhada. A responsabilidade é o corpo desse sonho.

 

III

A liberdade não tem donos. Nem os capitães, nem os generais, nem os livros, nem os políticos, nem os professores, nem os alunos, nem os cravos, nem o mês de abril.

Por isso é que se chama liberdade, tal como os pássaros se chamam pássaros porque voam até ao céu. E se houver quem mande nela, então a liberdade terá de se chamar outra coisa qualquer.

Talvez uma gaiola muito grande, talvez um jardim com muros muito, muito altos, talvez um cérebro sem imaginação, talvez um peito com uma pedra lá dentro, talvez uma escola só com regulamentos.

A liberdade não tem donos, só filhos e filhas e irmãos e amigos e poemas e horizontes.

Os homens e as mulheres e as crianças é que são os seus reais guardiões, é neles que ela vive e se multiplica.

É dentro das cabeças independentes e democratas que ela resiste e se espalha.

É no anonimato das pessoas comuns que a liberdade gosta de viver, é aí o seu lugar, é aí que abre a boca, é aí que não tem medo, é aí que encontra a sua razão de ser, é aí que se concretiza, é aí que se enraíza e dá flor e dá fruto, é aí que vai fazendo História.

A liberdade tem os mesmos donos que o vento tem.

 

IV

Sou livre porque questiono e me assomo para lá do corpo das coisas, espreito para debaixo das certezas, por detrás das verdades, faço frente ao medo.

Sou livre porque digo ao meu amor que ela/ele é um lago grande e eu um peixe feliz.

Sinto-me livre porque faço de conta que um poema é um céu de papel e eu uma ave pequena, de asas tenras, à procura do mecanismo do vento.

Sinto-me liberto porque quando estou triste abalo com os pássaros vagabundos.

 

V

Pai, há tanta gente neste país que não gosta de cravos, mas eu não conheço flor mais bonita do que a liberdade, a liberdade é a única flor que cresce no peito, nenhuma outra se consegue apanhar só com as mãos de um sorriso.

Há tanta gente que acha que os cravos têm espinhos, mas eu não conheço flor mais suave do que a democracia, a democracia é a única flor que cresce no coração, nenhuma outra se consegue apanhar só com os olhos da felicidade.

Há tanta gente a não conseguir pegar em cravos com o amor com que se pega em filhos, mas eu não conheço flor mais bonita do que os cravos que são como filhos, nenhuma outra nos faz acreditar tanto na esperança.

Há tanta gente a ignorar cravos, mas eu não conheço mais nenhuma flor que cresça no pensamento, o pensamento é a única flor que não murcha, nenhuma outra se consegue apanhar só com as palavras da boca.

Há tanta gente a preferir que os cravos sejam apenas cravos, mas eu não conheço flor mais viçosa do que a fraternidade, a fraternidade é a única flor que cresce na alma, nenhuma outra se consegue apanhar só com um abraço.

Há almas que têm plantações de cravos dentro de si, as pessoas abrem a alma e nós vemos um campo de cravos a florir, os cravos têm a altura e a medida certa, nem escondem passados, nem tapam horizontes. Pai, os cravos são luzes no escuro e por isso eu não tenho medo de quem não gosta de cravos.

 

VI

Para que a liberdade se mantenha pura,

não se pode dar uma no cravo e outra na ditadura.

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