Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: A sagração do vinho

04 de abril 2023 - 15:00
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Os caminhos inalienáveis em torno do mundo do vinho trouxeram-me até a real cidade eborense em 2015 para vivenciar, pela primeira vez, o contacto com a experiência de fazer vinho. E foi de tal forma, que me apercebi que já não seria capaz de fazer a vida na ausência do sagrado elixir. Percebi então a enorme diferença entre fazer vinho e vinificar: “fazer vinho toda a gente faz, agora vinificar, é um ato de amor, vai desde o campo até ao golo do bebedor“, servindo-me das palavras sábias de Tomás Vieira da Silva. Foi esta realidade que vivi na primeira vindima que realizei, na adega da Fita Preta, em Évora.

 

Depois de viver o vinho, já não se vive sem o vinho. De que serve o vinho, se não chegar às pessoas? Foi este o mote, que alimentou o pretexto para a criação da “Coisas de Vinho”, uma tertúlia mensal que uniu pessoas, lugares e vinho, e, sobretudo, criou uma prática e talvez até uma comunidade. O conceito de unir as pessoas em torno dos saberes e sabores do vinho permitiu, por um lado, reforçar as raízes identitárias ao abordar a sua dimensão histórica e cultural, e, por outro, chamar a atenção para a importância da vinha, como cultura e ato agrícola, como não existe em nenhuma outra parte do mundo, se atendermos à dimensão do País e da área de vinha plantada. O projeto procurou assim defender, e salvaguardar o País e a região intitulada como “Civilização do Vinho”, detentora de uma cultura própria, constituída por materiais geográficos, culturais, económicos, sociológicos e geológicos únicos.

 

Com o passar do tempo, a “Coisas de Vinho” ganhou dimensão e as tertúlias passaram por todo o Alentejo, dando origem ao “Tabernas do Alentejo – vinho, arte e ciência”, sob a égide “o vinho é arte que não dispensa a ciência”. E, a melhor das artes é aquela que permite dar voz à alma do povo: arte moderna, sem dúvida, pois a arte é, ao mesmo tempo, eternidade e momento, mas arte com raízes no nosso solo e na nossa alma, tanto mais original quanto mais diferente, tanto mais universal quanto mais nacional.

 

Neste tempo que celebra o equinócio da primavera e o Dia Mundial da Poesia, o vinho representa a aliança do homem com a natureza. O seu valor simbólico, a sua complexidade polissémica explica a sua utilização como recurso literário. O sangue da terra permite fecundar o território do imaginário através da alquimia dos sentidos. Do ritual da prova ao sagrado, o vinho permite penetrar o mistério da substância, material e espiritual.

 

Por isso o “Tabernas do Alentejo” consubstancia uma atitude, uma vontade, de todos os atores envolvidos, que preservam nesta realidade, minada pelas várias crises, em militar pela abertura intelectual e federativa das energias prontas a lutar contra a morte dos valores culturais, sacrificadas no altar da razão financeira e subjugadas ao tecnológico, de forma a alertar para um verdadeiro retrocesso civilizacional que ameaça toda a nossa cultura que define a nossa identidade coletiva. Desejamos que Évora, a Capital Europeia da Cultura em 2027, não ignore este importante tema.

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