Sirvo-me do tema da última crónica, como uma ponte para nos lançar num momento relevante ao mesmo tempo paradoxal, que é aquele em nos encontramos, por conter um duplo significado, profano e religioso. A data, corresponde ao feriado prolongado do Carnaval, que porventura dá início ao mistério quaresmal: o Entrudo, que tem a duração de três dias, ou “tinha” porque hoje, com a perda dos valores e das referências, as tradições passaram a ser mercantilizadas, em prol de uma felicidade financeira mas vazia de conteúdo significativo, quer individual quer coletivo.
Este texto, não passa de um humilde e mero contributo no sentido de recuperar a essência, e resgatar o significado simbólico da festa do Carnaval, o que pressupõe um regressus ad uterum, que se perdeu no caminho das tendências e das modas.
O Carnaval, tem origem pagã, e como o nome indica, vem de navalis carrus, que é um veículo em forma de barco, montado sobre rodas, usado nas procissões de Dionísio, e/ou designa o tempo em que a (carn) vai ávale’ ou seja, cai. Esta celebração, é considerada a festa profana mais antiga que se tem registo. As suas raízes mais remotas encontram no antigo Egipto, as festas em homenagem a Isis e Osíris, e na Grécia, através do culto a Dionísio, em que eram celebrados os ciclos da Natureza, de morte e renascimento, o corpo de Dionisio (em forma de cachos de uva) é desmembrado, significa a morte no inverno, para depois dar lugar ao vinho, na primavera; simbolizando a vitória da luz sobre as trevas, e da primavera sobre o inverno.
É precisamente esta ambiguidade, tão bem cantada na música de Chico Buarque: ”vai passar”: …” tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia, que se chamava Carnaval, o carnaval, o carnaval”. É precisamente esta oportunidade de viver uma segunda vida, nas palavras de Mikhail Baktin: “durante o Carnaval é a própria vida que representa, e durante um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do Carnaval, que permite viver a “folia dionisíaca”, uma ode musical à loucura positiva que nos aproxima dos arquétipos. Folia é loucura, é fole, sopro, e recordar que independentemente das circunstâncias externas, sempre nos podemos inspirar e viver os arquétipos do Bom, do Belo, do Justo e do Verdadeiro. O que nos convida involuntariamente à seguinte interrogação: a força do arquétipo de Dionísio o que é capaz de mobilizar em nós? Ele é o Deus que possibilita o estado alterado de consciência através do seu néctar sagrado, levando à conexão com o divino através da liberdade, amor e alegria. A ligação com a energia suprema pode ser feita sem sofrimento e dor, apesar destes sentimentos e sensações também fazerem parte da vida.
Dionísio vem-nos mostrar que a vida pode ser vivida de forma prazerosa, sem preconceitos. A festividade e o vinho representam a leveza diante da vida para que tudo se possa realizar. Tudo depende do livre arbítrio e do equilíbrio de cada um ao se utilizar dos recursos promovidos pela força dos arquétipos.