Diário do Alentejo

António Vilhena: “Um artista é aquele que enfrenta a luz para iluminar as sombras de outras vidas”

23 de janeiro 2023 - 12:00
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António Vilhena é natural de Beja, é licenciado em Psicologia, pela Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação da Universidade de Coimbra, e mestre em Estudos Clássicos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É poeta, cronista e autor de livros infantis. Entre os anos de 2009 e 2013 foi vereador da Câmara Municipal de Coimbra. E, entre os anos de 2014 e 2022, foi curador da Casa da Escrita de Coimbra, tendo cessado esta função no 31 de maio de 2022.

 

Ao longo da sua vida “coletou” funções e acumulou competência na área cultural: em 1987 foi responsável pelo pelouro da cultura da Direção Geral da Associação Académica de Coimbra, e, nesse âmbito, organizou, durante três dias, as Conferências Nacionais sobre Timor-Leste, reunindo pela primeira vez, à mesma mesa, dirigentes da Fretilin, UDT e Apodete. Ainda em 1987 foi distinguido com o convite do Presidente da República, Mário Soares, aquando de uma visita a Coimbra, para declamar poesia no Palácio de S. Marcos.

 

Em 1991 apresentou o 5.º Encontro Internacional de Coros Universitários, no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra. Em 1992 colaborou ativamente com Natália Correia na Frente Nacional para a Defesa da Cultura. Em 1994 participou no ciclo de conferências na Feira do Livro do Funchal – “O Escritor e a Obra” –, com José Saramago e Fernando Dacosta, e, nesse mesmo ano, participou no “Outono Poético”, em Monsaraz.

 

Em 1995 foi eleito pelo Senado para a Fundação Cultural da Universidade de Coimbra. Em 1996 recitou poemas de João de Deus, no centenário da sua morte, no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra. Entre 2000 e 2004 foi responsável pela organização e dinamização de vários colóquios de cariz cultural. Desde 2018 é curador da Festa Literária “Folha”, uma organização da Sociedade das Águas da Curia e da Câmara Municipal de Anadia. Em 2019 foi curador da exposição “Saudade do que há-de vir”, evocativa do centenário do poeta João José Cochofel. Em 2022 foi curador da Exposição “Amélia Janny – 180 anos do seu nascimento”.

 

António Vilhena tem publicadas as obras "Do Ventre da Terra"  (poesia, 1987), "Trança D`Água" (poesia, 1989), "A Eterna Paixão de Nunca Estar Contente" (prosa poética, 1991), "Mais Felizes Que o Sonho" (poesia, 1996), "Diálogos de Rosa e Espada" (crónicas, 2004), "O Piano Adormecido" (infantil, 2006), "Canto Imperecível das Aves" (poesia, 2012), "A Formiga Barriguda" (infantil, 2012), "Templo do Fogo Insaciável" (poesia, 2013), "As Férias da Formiga Barriguda" (infantil, 2013), "Cartas a Um Amor Ausente" (prosa poética, 2014), "A Orquestra da Formiga Barriguda" (infantil, 2014), "Picó Seis Dedos no Planeta Azul" (infantil, 2016), "Viagem Inadiável da Água" (viagens, 2019), "Onde Está o Meu Abraço?" (infantil, 2021), e "Brincar na Água" (infantil, 2022). "Um Amor Que Nos Queira", livro de crónicas, será a próxima obra a publicar.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras? Gostava de recordar uma pequena história. Quando publiquei o meu primeiro livro, Do Ventre da Terra (poesia, 1987) já estava em Coimbra. Durante as férias, vim a Beja e fui oferecer um exemplar ao meu querido professor primário, Aiveca Acabado. Durante a conversa ele falou-me de uma redação quando era seu aluno. Essa redação, disse-me, consta de uma antologia editada pela Calouste Gulbenkian. Comecei a considerar essa redação como a primeira pedra dessa já longa viagem onde as palavras são alimento e companhia. O gosto pela leitura foi uma descoberta acidental. Um dia a minha mãe mandou-me comprar feijão e eu enganei-me na rua e na porta, e fui parar à praça da República. Entrei num edifício e um senhor muito simpático mandou-me entrar. Disse-lhe que queria feijão manteiga. Ele sorriu e levou-me a conhecer a sala da biblioteca. Explicou-me que podia levar livros para ler em casa. Preenchi uma ficha e, a partir daí, eu tinha um cartão de leitor. Esse foi o meu primeiro ato de cidadania e de responsabilidade. O bibliotecário chamava-se Martins, a partir desse momento passou a ser o meu amigo dos livros. Uma personalidade a quem a cidade de Beja muito deve.

 

Com intervenção em várias valências da escrita, qual o registo de eleição? Quando se escreve o importante é escrever. Nunca tive uma estratégia, nunca fui organizado e nunca planeei, fui sempre um anarquista sem projeto que foi gerindo os impulsos e o hedonismo. Na gaveta tenho uma entropia de ideias e manuscritos que podem resultar em vários livros. Sinto-me poeta e isso atravessa tudo o que escrevo independentemente do género literário.

 

Quais as motivações para escrever? Onde se vai beber inspiração? A realidade supera sempre a ficção, por isso, a inquietação é um rio que se espreguiça nas nossas vidas para que possamos aproveitar as suas correntes. Quando nos banhamos nessas águas, descobrimos que há outras maneiras de gastarmos as nossas inquietações, de sermos sol e sombra, de sermos luz e treva, de nos agigantarmos perante o inconformismo. Um artista é aquele que enfrenta a luz para iluminar as sombras de outras vidas.

 

Sendo um alentejano fora da planície, que papel desempenha o Alentejo na escrita de António Vilhena? O Alentejo é a minha referência cultural, no sentido em que a minha personalidade base foi alimentada pela lonjura, os cheiros e a cultura ancestral de uma região onde o silêncio e a esperança eram amigas. Ter nascido no Alentejo faz-me sentir a responsabilidade de defender sempre as suas gentes e as suas causas. O Alentejo fez mais por mim do que eu fiz por ele, por isso, sinto-me um devedor, mas acredito que esse momento chegará.

 

Que ligações mantém ao Alentejo? Mantenho a minha família nuclear, os meus amigos e, principalmente, uma paixão profunda por tudo o que esta região significou e, ainda, representa para mim. É uma alegria imensa Évora ter sido escolhida para Capital Europeia da Cultura em 2027. Espero colaborar e contribuir para esse projeto que a todos nos deve envolver e motivar.

 

Que memória guarda do Alentejo de António Vilhena? Guardo muitas, mas não consigo ver a árvore sem pensar na floresta. Desde logo a rua onde cresci, brinquei e aprendi a olhar as estrelas. A minha escola primária, os meus professores que ousaram ensinar-me para eu ser uma pessoa curiosa e querer alimentar utopias. O próprio “Diário do Alentejo” onde aprendi a pontuar os textos. Neste momento não posso deixar de referir alguns amigos de sempre: Joaquim Caetano, Jorge Castanho, Martinho Marques, Victor Silva, António Paisana e Leonel Borrela – que já nos deixou. Beja sempre foi uma cidade de reencontros e de nostalgia.

 

Dos trabalhos desenvolvidos ao longo do percurso, alguns que tenham sido mais marcantes? O mais marcante foi o primeiro, Do Ventre da Terra, um livro de poesia que foi escrito em Beja, mas que foi apresentado em Coimbra, quando eu era estudante. Foi apresentado nos claustros da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Juntaram-se à festa o Martinho Marques, poeta inigualável que vive em Beja, o escritor Manuel da Fonseca e o professor José Carlos Seabra Pereira, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Pode-se imaginar o orgulho e o medo que um jovem sente nesse momento, estão ali todas as emoções, um misto de tudo o que é humano. Depois os livros aconteceram com naturalidade. Conheci a Natália Correia e ela abriu-me a “caixa de Pandora”.

 

Onde está o meu abraço? Que livro é este, e que importância para os tempos que se vivem? "Onde Está o Meu Abraço?" é um livro infantil, bilingue, que foi escrito durante a pandemia, quando o “abraço” era a metáfora da afetividade, da saudade e do encontro. Nesse período, um abraço era como a água quando se tem sede, permite-nos continuar a viagem. Entretanto saiu um novo livro infantil, Brincar na Água, que apresentarei na Biblioteca Municipal de Beja, em 2023.

 

Qual o papel que tem o percurso profissional e académico na criação literária de António Vilhena?  A Psicologia é uma ciência que trabalha com as emoções, os pensamentos e os comportamentos. Eu sou um cognitivo-comportamentalista, este é o meu modelo teórico e, por isso, muito focado na resolução dos problemas daqueles que sofrem, ajudando-os a compreenderem os seus pensamentos irracionais e as suas consequências. A literatura alimenta-se, também, desse imaginário, onde a melhor ficção nunca ultrapassa a realidade. É a realidade que se empresta aos escritores para estes tecerem o drama com outros nomes.

 

Algum momento inusitado experimentado ao longo do percurso de autor? Talvez seja oportuno lembrar que em 2023 se comemoram os cem anos de nascimento de Natália Correia (1923-1993). E enquanto ela foi viva acompanhei-a muito em viagens e eventos culturais. Uma vez, no Porto, no Café Magestic, numa sessão de leitura de poesia, um jovem que estava na assistência começou a fazer sapateado, eis que Natália parou e pediu ao desafiador para fazer o pino à sua frente – foi um momento inesquecível.

 

Qual a opinião sobre o universo literário em Portugal? O universo literário não é diferente de outras áreas, há de tudo, para o bem e para o mal. Trata-se de uma área de negócio que está bipolarizado entre a Leya e a Porto Editora. O mercado português é pequeno e, por isso, é fácil perceber o que eu quero dizer. O capitalismo nunca foi sério e nunca será. Dantes havia pequenas editoras e editores que se dedicavam aos livros e aos autores. Esse tempo morreu. Felizmente que há sempre gente nova e muito criativa que renova o bolor e o bafio.

 

E o acordo ortográfico? Claro que sou contra este desacordo ortográfico. Eu sei que o Português é uma língua viva e, por isso, muda independentemente de querermos aprisioná-la. Mas o desacordo de 1990 é claramente uma tentativa falhada de fazer a quadratura do círculo.

 

Que sonhos literários/artísticos moram em António Vilhena? Continuo a escrever todos os dias, tenho muitos livros para publicar e não alimento sonhos que não sejam ver os meus filhos crescer e a serem felizes. Já agora, gostaria que o Homem aprendesse com o seu passado, que não fizesse a guerra, respeitasse a vida, a natureza e tornasse o planeta mais sustentável para todos.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo? Tenho um livro de crónicas e um livro de poesia para 2023. Trabalho todos os dias para me surpreender com as palavras que conheço e que são a minha utopia. Alimento-me desse horizonte. A minha mulher, Angel, é jornalista, ela é a minha grande inspiração nestes dias cinzentos que vivemos na Europa.

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