Diário do Alentejo

Crónica: "O Eterno Marido"

16 de janeiro 2023 - 10:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

O romance com que inauguro 2023 – uma novela, mais do que um romance, em abono da verdade – é dos menos conhecidos de Fiódor Dostoiévski, talvez porque, ao contrário do que sucede com outros romances mais afamados, os eventos conflituosos e as emoções que deles brotam têm lugar na esfera privada de dois homens. Como acréscimo, os conflitos entre um marido enganado e o amante da mulher revestem-se de tonalidades paródicas e trágico-cómicas. Ainda assim, e como é típico do realismo psicológico de Dostoiévski, este pequeno romance constitui um ensaio sobre os mistérios da psicologia humana, em particular sobre o modo como a mente potencia o ser humano para actos de vileza ou de nobreza e a necessidade (ou a relutância) de ser responsabilizado pelas suas acções. O enredo de O Eterno Marido é de tal modo comum que, mesmo quem nunca tenha lido a obra, certamente o reconhecerá, com maiores ou menores divergências, na comunidade ao redor. Tal circunstância não resulta em qualquer desprimor pela obra. Pelo contrário, o estilo e a estrutura equilibrada da narrativa, o desenvolvimento perfeitamente compassado das peripécias, como se de uma composição musical se tratasse, levou a crítica literária a considerá-la uma das mais completas obras do autor russo.

 

Alexei Ivanovich Velchaninov é um proprietário de terras que parece atravessar uma crise de meia-idade: quando o leitor o encontra, no primeiro capítulo, acha-o nervoso, deprimido, hipocondríaco, atormentado por certos actos indecorosos que cometera no passado. No tempo da acção, narrada  in medias res, Alexei encontra-se na sufocante e opressiva S. Petersburgo por conta de um julgamento acerca de uns hectares de terra. Na cidade, recebe a visita de um velho conhecido, que recentemente enviuvara, Pavel Pavlovich Trusotsky, que viaja com Liza, a sua filha de oito anos. Com o avançar da intriga, o leitor apercebe-se de que, nove anos antes, Alexei mantivera um relacionamento extraconjugal de um ano com Natalia, a esposa de Pavel, e prevê de imediato que o pai biológico de Liza é Alexei. O confronto entre o marido traído, o amante de Natalia e a criança, fruto do adultério, constitui um momento de tensão, embora o leitor, tal como o protagonista, nunca saiba de facto se será esse o momento que marca o ponto mais elevado do clímax narrativo.

 

Ao dar-se conta de que Pavel é, por conta dos eventos passados, um alcoólico que maltrata a filha, Alexei procura evitar que esta permaneça na casa do pai e procura no seu círculo de amigos uma família que acolha a criança. Desta decisão resultará mais uma conversa desagradável e o desenlace da sua resolução porá em movimento um encadeamento de ocorrências que irão culminar em consequências trágicas, que adensam a depressão de Alexei. Tempos mais tarde, Pavel visita uma vez mais Alexei, para lhe fazer uma estranha solicitação: como pretende contrair novo matrimónio, com uma jovem de quinze anos, roga a Alexei que interceda por ele junto da jovem, que todavia está secretamente comprometida com Alexander Lobov, um jovem de dezanove anos. Pavel é uma personagem trágico-cómica, que parece destinada a cumprir eternamente o papel de marido traído. No final do romance – e só então – é compreensível, tanto para o leitor como para o protagonista, que os dois homens são igualmente responsáveis pelo destino de Liza. Pavel, porque lhe infligira maus-tratos físicos e psicológicos, movido pelo ódio que tinha a Alexei e este porque, tendo a criança à sua frente, a prefere entregar a terceiros, ao invés de assumir a responsabilidade pelas suas acções e ficar com ela.

 

A simetria dos arcos de tensão da narrativa originam um ritmo compassado que serena o leitor, até ao desfecho da intriga, onde este se desperta para uma reacção emotiva tão forte quanto inesperada. É neste ponto que se releva todo o génio de Dostoiévski. Afinal, não é o objectivo último de qualquer romancista implementar os seus conceitos e opiniões na mente do leitor, do modo mais eficaz possível? A técnica narrativa que o autor russo emprega neste romance difere de quaisquer outros romances seus porque retira da intriga a voz autoral, cujo encargo é guiar o leitor. Em O Eterno Marido, é a consciências das personagens que dita ao leitor percepções do que são ou não actos correctos, e o conduz através de uma multitude de momentos dramáticos. O resultado é um profundo envolvimento do leitor nos conflitos interiores das personagens e a partilha de um sentido de responsabilidade moral que permanece muito depois da leitura do romance.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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