Diário do Alentejo

Luís Fernandes: "O trabalho nas áreas do bullying e cyberbullying é uma causa de vida"

01 de janeiro 2023 - 10:30
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Nasceu em 1974, na Amora, concelho do Seixal, onde diz ter tido “uma infância muito feliz e intensa, com toda aquela “agitação” do pós-25 de Abril, num “caldo social e cultural”, que foi marcante para toda uma geração.”

 

Em novembro de 1994 “aterrou” em Beja, na base aérea, ao abrigo da condição de Oficial da Força Aérea, na área da Análise e Previsão Meteorológica, função que desempenhou durante cerca de 10 anos. Pela capital baixo alentejana licenciou-se em Psicologia Educacional, no Instituto de Psicologia Aplicada (ISPA), e, posteriormente, fez mestrado em Observação e Análise da Relação Educativa, na Universidade do Algarve. Durante sete anos foi professor assistente no ISPA, ministrando cadeiras na área da psicologia da educação. Nos últimos anos da licenciatura começou a fazer os primeiros trabalhos e sessões nas áreas da violência, indisciplina e bullying.

 

Uma atividade que se prolongou após o final do percurso académico, coordenando e supervisionando, por todo o país, vários projetos nas áreas do bullying, cyberbullying e violência em idade escolar, com destaque para o “STOP Bullying”, “Bullying 360°”, “Outubro – Mês de Prevenção e Combate ao Bullying e Cyberbullying” e, mais recentemente, o projeto, “Bullying.pt”, criado em outubro deste ano.

 

É um dos especialistas no MOOC (Massive Online Open Course) “Bullying & Ciberbullying: Prevenir e Agir”, promovido pela Direção Geral de Educação (DGE) no âmbito do Centro de Sensibilização SeguraNet e da equipa de Educação para a Saúde; e é consultor do grupo de trabalho da DGE para o Plano “Escola Sem Bullying. Escola Sem Violência” (2019), que é desenvolvido em todos os Agrupamentos de Escolas do país. Para além deste amplo trajeto, é ainda psicólogo sénior e supervisor de estágios da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP).

 

Durante a pandemia, integrou um grupo multidisciplinar de especialistas que trabalhou na área da defesa e promoção dos direitos das crianças e jovens. E nessa sequência, participou na fundação, em setembro de 2020, da AjudAjudar – Associação de Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens, que tem sede em Coimbra e que conta com personalidades como Carlos Neto, Laborinho Lúcio, Margarida Gaspar de Matos, José Morgado, entre muitos outros.

 

Do seu universo bibliográfico fazem parte as obras, enquanto coautor: Plano Bullying - Como Apagar o Bullying da Escola; Diz não ao Bullying - Não deixes que te façam mal!; Cyberbullying - Um Guia Para Pais e Educadores, todos eles editados pela Plátano Editora. Para além destes títulos, teve participação em obras de outros autores nas áreas da psicologia, adolescência e bullying e cyberbullying escrevendo capítulos nos mesmos, de que é exemplo o capítulo When Bullying crosses the screen, feito em parceria com a Sónia Seixas e o Tito de Morais e que integrou o livro, Bullying: Perspectives, Practice and Insights, editado pelo Conselho da Europa e que reuniu alguns dos maiores especialistas mundiais nas áreas do bullying e cyberbullying.

 

Eis o autor e o psicólogo Luís Fernandes na primeira pessoa!

 

Texto Luís Miguel Ricardo

Quando e como foi descoberta a afinidade para comunicar através dos livros? Eu sempre adorei ler e escrever. Desde que me lembro, que escrevo. Tenho várias pessoas próximas que escrevem muito bem e desde sempre fui estimulado a fazê-lo. Tentei sempre não ficar apenas por um determinado estilo ou tipo de escrita. Aliás, tenho muitas coisas escritas que, nos próximos tempos, quem sabe, possam vir a ser publicadas. Não tenho um(a) escritor(a) de referência, mas gosto dos que escrevem com o coração, ou seja, aqueles que relatam histórias, vidas, mas que nos transmitem emoções. Ler é viver outras vidas, é “viajar” para mundos que antes não conhecíamos e, para mim, ler estimula-me muito a continuar a escrever.

 

Para além dos livros temáticos sobre bullying e cyberbullying, que outras incursões no campo das letras? O segundo livro relativo ao bullying, o Diz Não ao Bullying – Não deixes que te façam mal! é uma banda desenhada, dirigida a crianças e até teve a colaboração da minha filha. Escrevi durante vários anos artigos técnicos para jornais e revistas em áreas como o ambiente, cetáceos, mergulho, fotografia subaquática, meteorologia, como o faço agora relativamente ao bullying, cyberbullying, violência, indisciplina. Tenho várias histórias infantis escritas e há uns anos desafiei-me em escrever todos os dias um texto poético, cujo foco fossem as relações humanas. Entusiasmei-me com o desafio e no final do ano tinha mais de 600 textos, muitos destes fui partilhando nas redes sociais.

 

Quais as motivações por detrás destas obras que abordam temas tão presentes na sociedade atual? Para mim, o trabalho nas áreas do bullying e cyberbullying é uma causa de vida. Escrever sobre estes temas, dar voz a quem não tem, fazer chegar informações, orientações a cada vez mais pessoas, ajudar crianças, jovens, famílias, escolas, clubes desportivos, CPCJ (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens), equipas de projetos vários, incentivar a criação e implementação de programas e projetos antibullying é o meu principal objetivo. E para otimizar este objetivo, criei recentemente o “Bullying.pt”, que no início de 2023 terá o seu site completamente operacional e será um passo importante no que respeita à prevenção, combate e intervenção nas áreas do bullying e cyberbullying em idade escolar, até porque trará associado outros projetos, iniciativas e campanhas que contarão com muitas surpresas e certamente farão com que muitas pessoas fiquem mais sensibilizadas e atentas para as questões do trabalho antibullying.

 

O bullying e o cyberbullying não é exclusivo dos mais novos. Queres desenvolver esta perspetiva? Os comportamentos de bullying e cyberbullying afetam uma em cada três crianças em idade escolar, ou seja, um terço dos nossos mais novos são vítimas, agressores ou têm esse duplo papel. Por exemplo, um aluno de 7.º ano que é vítima de um colega do 8.º ou 9.º ano, mas que, ao mesmo tempo, é agressor de um do 5.º ano, ou seja, é vítima e agressor. São comportamentos que designamos como sendo em idade escolar. Porém, também temos “bullying entre adultos”, em contexto laboral, chama-se mobbing. Muitas das vítimas de mobbing durante a sua infância e juventude já haviam sido de bullying, como tal, é essencial que estes comportamentos agressivos entre pares sejam alvo de uma intervenção o mais precocemente possível. Muitas das “marcas” deixadas pelo bullying, caso não exista um acompanhamento especializado, perduram décadas, aliás, eu defendo há muitos anos de que nos casos graves de bullying e/ou cyberbullying não existem ex-vítimas, uma vez que ficam sempre mazelas para a vida e que condicionarão a vida adulta. Rara é a sessão que faço para adultos (famílias, professores, técnicos e comunidade em geral) em que uma ou duas pessoas não refiram que foram vítimas deste tipo de comportamentos quando eram pequenas e de como esse facto marcou negativamente o seu percurso de vida pessoal, afetiva e profissional.

 

Incidindo o teu trabalho mais nas comunidades escolares, como é a realidade das escolas alentejanas, no que a fenómenos de violência diz respeito, comparativamente com outras regiões do país? Há muitos anos que defendo a necessidade urgente de se realizar um diagnóstico verdadeiramente nacional, preferencialmente por concelhos, dos índices de bullying e cyberbullying. Ainda não existe esse trabalho, mas é algo que, posso adiantar, vai iniciar-se nos próximos meses, uma vez que reuni uma equipa de investigadores que, em colaboração com a Direção Geral de Educação (DGE) do Ministério da Educação, dará este importante passo. O que temos atualmente são visões parcelares da realidade, investigações feitas numa determinada área geográfica, ano de escolaridade ou faixa etária, mas que não apresentam uma visão global e nacional da questão. No que respeita aos agrupamentos de escolas no Alentejo, a realidade é semelhante a muitas outras zonas do país, afeta uma em cada três crianças e jovens em idade escolar, que os rapazes se envolvem em maior número do que as raparigas, como vítimas e também como agressores, que é na faixa etária entre os 11 e os 13 anos que encontramos mais vítimas e entre os 13 e os 15 anos, os agressores, ou que o número de observadores é mais elevado do que de vítimas e agressores. Como já referi são cerca de 65 por cento do total de crianças e jovens em idade escolar e são estes que, devidamente capacitados, poderão fazer a diferença junto das situações de bullying. No que respeita ao cyberbullying, por norma, as raparigas ocupam o seu tempo nos dispositivos digitais em atividades nas redes sociais, interagindo com os pares, vendo vídeos, entre outras, enquanto o sexo masculino são os jogos a sua principal atividade online. Todas estas atividades podem originar situações graves de cyberbullying até porque, infelizmente, são os ecrãs, em muitas situações, os principais educadores das nossas crianças e jovens.

 

Alguma “receita” rápida para identificar sinais da prática de bullying nas vítimas? Não existem “receitas mágicas” para se identificar uma situação de bullying, mas existem alguns sinais que são comuns nas crianças e jovens que estão a ser vítimas, como por exemplo: dificuldades de aprendizagem e de concentração em contexto de sala de aula; descer as suas notas escolares, de forma repentina; resistência para ir à escola, demonstrando desinteresse nas atividades escolares, principalmente as que envolvem uma maior interação com os colegas: visitas de estudo, passeios e outras atividades extracurriculares; pesadelos, insónias ou medo de dormir sozinho; chorar frequentemente, ter sempre muitas queixas em relação à escola; referir que não tem nenhum amigo na escola e que passa todos os intervalos sozinho; existirem relatos de estar a ser alvo de humilhações e gozo por parte de colegas; pedir para ser transferido para outra turma ou mesmo de escola; tornar-se uma criança/jovem mais ansioso, deprimido ou impulsivo, em alguns casos podendo mesmo manifestar alguma agressividade verbal ou até física; regressar a casa com nódoas negras ou feridas, as quais tem dificuldade em explicar; queixa-se frequentemente de dores de cabeça ou de estômago; tornar-se uma criança/jovem mais fechado, isolado e hipersensível a críticas; “perder”, com muita frequência, dinheiro ou outros objetos: materiais escolares vários, calculadoras, telemóveis, smartwatches, etc.; comportamentos de automutilação; em situações extremas, tentar mesmo o suicídio.

 

Algumas recomendações para evitar ser vítima de bullying e cyberbullying? Prevenir e combater o bullying e o cyberbullying é uma missão que nunca está terminada. É muito importante sermos resilientes e nada tolerantes à exclusão, à humilhação, à agressão física, verbal, psicológica, sexual ou realizada através de dispositivos digitais em contextos online. Uma das estratégias mais “fortes”, que causam mais impacto, é o testemunho de crianças, jovens e famílias que vivenciaram situações deste tipo. No caso dos mais novos, o relato de vítimas e/ou agressores é muito impactante e uma excelente estratégia de prevenção de futuras situações de bullying. Como acontecem noutras formas de violência, a maior “arma” do agressor é o silêncio em que consegue manter a(s) sua(s) vítima(s). Logo, é essencial que todos os adultos estejam especialmente atentos e fomentem a denúncia das situações de bullying e/ou cyberbullying. Mas o que sabemos é que cerca de 60 por cento das vítimas continua a não denunciar as situações e, quando o fazem, demoram, em média, sensivelmente 13 meses. Uma boa comunicação entre pais e filhos, que permite que ao mínimo problema a criança ou jovem relate a situação à família, o facto de se estar bem integrado na turma e escola, ter um bom grupo de amigos que permita que a potencial vítima nunca ande sozinha, seja na escola ou noutro contexto, são apenas alguns exemplos, mas que muitas vezes fazem toda a diferença para evitar que alguém caía nas malhas do bullying.

 

Dos trabalhos/projetos desenvolvidos ao longo do percurso, consegues nomear os mais marcantes? De todos os projetos e focando-me essencialmente nos que ajudei a criar e a implementar aqui na região, o “STOP Bullying” foi muito importante, porque foi o 1º projeto que desenvolvemos no Agrupamento Nº 1 de Beja, já lá vão cerca de 15 anos. Este projeto foi desenvolvido na EBI de Santa Maria, durante três anos, e envolveu toda a comunidade educativa, desde o pré-escolar, até ao 9º ano, convocando alunos, professores, técnicos, assistentes operacionais, pais, mães e encarregados de educação, através da realização de muitas atividades, desde focus-group, com todos estes grupos destinatários do projeto, sessões de formação, programas de competências pessoais e sociais, criação de materiais, dinamização de assembleias de delegados de turma, observação e registo dos espaços de recreio (1º ciclo e dos 2.º e 3.º ciclos), entre muitas outras. De seguida, o “Projeto Outubro – Mês de Prevenção e Combate ao Bullying e Cyberbullying”, que foi criado em 2016 por três entidades: a Associação Sementes de Vida, a Câmara Municipal de Beja e a CPCJ de Beja, e que se foca no mês de outubro, mês de eleição no que respeita ao combate ao bullying, em que temos na primeira segunda feira do mês, o Dia Mundial de Prevenção do Bullying (em 2023 será no dia 02 de outubro) e o mais conhecido, o 20 de outubro, em que se assinala o Dia Mundial de Combate ao Bullying. Este projeto traduz-se na realização de muitas atividades de sensibilização e combate ao bullying e cyberbullying, desde sessões de (in)formação em todo o país, participação em programas de rádio, apresentação de comunicações em seminários e congressos, construção de materiais informativos, ações de formação para públicos-alvo específicos, desafios online, encontro de futebol infantil sob o mote “Aqui o Bullying não joga!” em parceria com o Clube Desportivo de Beja, entre muitas outras iniciativas. Finalmente, o meu mais recente projeto, “Bullying.pt”, criado em outubro passado e que tem um site associado e estará totalmente operacional no início de janeiro de 2023, e que será um passo à frente no que respeita à prevenção, combate e intervenção do bullying e cyberbullying, já que agrega uma série de especialistas nacionais e internacionais, e permitirá juntar alguns projetos e iniciativas que temos desenvolvido ao longo dos últimos anos, mas que agora irão ganhar uma nova dimensão e visibilidade, até porque terá alguns embaixadores famosos que levarão o projeto a todo o país.

 

Algumas situações marcantes experimentadas ao longo do trajeto? Ao longo dos anos tenho tido muitas histórias marcantes, umas muito positivas e recompensadoras, outras mais complicadas de lidar, porque muitas vezes demonstram o vazio emocional que muitas crianças e jovens, que têm de lidar com o bullying e cyberbullying, vivem. Há uns anos, na EBI de Santa Maria, um miúdo veio ter comigo e perguntou-me se eu era o “professor que matava o bullying na escola?”; ou a criança que andava às voltas no recreio da escola, a olhar para o céu e a abrir e a fechar a boca para que o Sol “pudesse entrar dentro dele e chegar ao coração, aquecendo-o”; ou outro que me dizia que eu devia ter um quadro interativo em que colocaria a palavra “bullying” e assim apareciam todos os locais da escola onde estavam a acontecer problemas, e eu fazia delete e essas agressões terminavam; ou um miúdo que me encontra na reprografia de uma escola de Beja e me diz que eu nunca posso desistir de combater o bullying, porque ele estava farto de gritar para dentro e alguém o tinha de ajudar. São muitas as histórias reais que tenho vivenciado e que me emocionam sempre, quer pela dor que tantas vezes apresentam ou, pelo contrário, pela lição positiva de resiliência que nos transmitem. São exemplos que tento nunca esquecer.

 

E o que está na “manga” a curto e médio prazo? Como tenho referido, muitos são os processos em que estou envolvido: alguns novos livros nas áreas do bullying e cyberbullying, mas também da psicologia em geral, nomeadamente no que respeita ao meu trabalho diário com crianças e adolescentes e suas famílias. A minha grande aposta nos próximos anos vai ser a implementação do projeto “Bullying.pt” e tudo o que lhe está associado, que acredito serão passos importantes no que respeita à prevenção, combate e intervenção de ambas as problemáticas, e que afetam, diariamente, os mais novos, mas também as suas famílias, escolas e comunidades. A realização do diagnóstico nacional do bullying e cyberbullying será uma das primeiras iniciativas que estamos a preparar em conjunto com uma associação e com o apoio da DGE e que será o passo mais importante nas últimas duas décadas em Portugal nesta área, uma vez que nos permitirá ter dados reais de todo o país. Também o projeto “O bullying trocado por miúdos” dirigido ao último ano do pré-escolar e que pretendemos arrancar no início do próximo ano letivo, e muitas outras iniciativas para as quais valerá a pena estarem atentos.

 

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