Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: Salute e palanque a tutti e quantti

15 de dezembro 2022 - 11:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Meu querido F.,

 

Estimo encontrar-te tão bem de saúde, quanto possível.

 

Em breve estaremos a comemorar o Natal, a celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Imbuídos ou não do espírito cristão que envolve esta data, tão próxima do final do ano, é compreensível a associação do Natal a uma época de finalização e, o Ano Novo, a recomeços. Plenos de esperança. Bem sei que somos inundados por clichês, ocos e hipócritas, vindos de todos os lados. Bem sei que “fica bem” dizê-los e escrevê-los: eles exaltam e alimentam a atmosfera “solidária” do Natal. Bem sei que é cada vez mais difícil “fugir” ao “circo” que se apoderou desta época. Mas, não obstante um certo cansaço que, de quando em vez, teima em espreitar, repetindo que não posso mudar o mundo, ainda continuo a acreditar na metáfora de Lorenz para explicar o efeito Borboleta, e a entender que “a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado”. Por isso, insisto em escrever estas pequenas missivas àqueles que guardo no meu coração. Quero desejar-te, agora e sempre, tudo o que te possa fazer feliz.

 

Vivemos uma época de paradoxos: grandes e rápidos avanços tecnológicos permitiram, entre outras coisas, que cerca de oito mil milhões de pessoas habitem este fabuloso planeta, cada vez mais próximas umas das outras, e cada vez mais sós; aprendemos a usar a tecnologia, mas esquecemos a importância de valores como o respeito, a tolerância, a compaixão e o altruísmo, remetendo-os para propósitos nobres, pontuais,  em vez de batalharmos por fazer deles um hábito; as redes sociais e outras aplicações para troca de mensagens e videochamadas são facilitadoras de contactos virtuais, mas também da ofensa e da agressão, sem rosto; criamos protocolos de funcionamento e de actuação, vazios e sem sentido, e ficamos contentes quando não os cumprimos; as elites defendem e apregoam o que raramente praticam, e até tomamos conhecimento de situações de manigância e de corrupção de bradar aos céus, com origem nessas mesmas elites; “estamos a tratar a atmosfera como um esgoto aberto” diz Al Gore, e todos o sabemos mas, na verdade, não queremos abrir mão do conforto que conquistámos, pelo contrário, queremos ainda mais e mais… e os exemplos poderiam continuar.

 

Posto isto, as festas natalícias - e tudo o que gira à volta delas - só poderiam ser um reflexo desta forma de estar no mundo: dissimulada, desgarrada e onde é difícil encontrar lucidez.

 

Confesso-te que me continuam a incomodar os “plásticos” desejos de “Boas Festas”. Nomeadamente se emanados por certas pessoas, ostensivamente egoístas e arrogantes, quando, durante o resto do ano, até evitam cumprimentar-me. Ou outras manifestações de putativa abnegação e bondade restritas àqueles dias do mês. Depois, tudo volta ao mesmo.

 

Ainda assim e como bem sabes, a quadra natalícia brinda-me sempre com alguma nostalgia. Esta tende a ser maior à medida que a minha idade avança. Talvez por quebrar uma certa candura, ao mostrar tão claramente o quanto a magia do Natal é temporária, enquanto o egoísmo é permanente, e por significar que tenho menos um ano de vida para viver. Recordo, com extraordinária nitidez, uma leitura do enorme Vergílio Ferreira, que me fizeste, mais do que uma vez, com o intuito de me serenar, e que agora reproduzo: «Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E, no entanto, ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim».

 

Tanto, tanto que me ensinaste, meu querido F., e tanto que me continuas a ensinar. Por isso sou grata à vida, por existires, por teres sido e por continuares a ser, parte da minha vida.

 

O ano de 2022 foi manifestamente um ano de recomeços, para mim. Sabes bem ao que me refiro. Todavia, guardei duas surpresas para o final do ano. Na altura certa, partilharei contigo. Adianto-te apenas que ambas me fazem muito feliz.

 

Agradeço esta e outras felicidades que tive a sorte e a oportunidade de viver durante este ano que está prestes a terminar. Mas estes bons momentos fariam pouco ou nenhum sentido sem aqueles que fazem parte do meu dia-a-dia, sem aqueles que não fazem parte do meu dia-a-dia, mas, de forma desinteressada, estão sempre presentes para me ajudar, e sem lembrar aqueles que já não estão fisicamente comigo, mas que continuam vivos nas minhas memórias e no meu coração.

 

Querido F., a vida é complexa e caótica; tanto mais ou tanto menos, quanto nos possamos perder ou encontrar, no meio de tamanha confusão.

 

Sabias que a M. veio a Portugal para uma curta estadia? Disse-me que regressava no feriado de 8 de Dezembro para que pudesse passar as Festas convosco.  Visitou-me esta semana. Ela irá entregar-te umas garrafas de vinho da talha para que o possas provar no jantar da consoada.

 

Ontem, na escola, apresentaram-me um colega, italiano, que veio proferir uma palestra. Uma pessoa gentil e delicada. Estivemos a conversar um bocadinho e quando nos despedimos, disse-me: «salute e palanque a tutti e quantti». Pedi-lhe para me fazer a tradução. Respondeu-me: «saúde e prosperidade a todos e em quantidade».

 

Termino endereçando-te este desejo/saudação, extensivo a toda a família, na beleza daquela que é considerada a língua da arte e a língua “oficial” da música: «salute e palanque a tutti e quantti».

 

Com carinho e ternura, desta tua

 

Ana Paula

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