Diário do Alentejo

Julieta Aurora Santos: “O mar é aquilo que nos dá nome e a essência de toda a nossa cultura”

02 de dezembro 2022 - 18:00
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Julieta Aurora Santos nasceu em Sines, em 1963, e nunca viveu noutro lugar. Refere que a cidade alentejana é a sua casa, o lugar onde sempre regressa. Desde idade precoce que começou a revelar uma particular sensibilidade para as artes, ficando, desde cedo e de algum modo, ligada à cultura. No seu percurso de vida trabalhou vários anos com o poeta Al Berto, de quem era amiga próxima, no Centro Cultural Emmerico Nunes, do qual foi também cofundadora.

 

Julieta Aurora Santos escreve, dirige atores, bailarinos e artistas de circo, é encenadora, dramaturga, autora de, praticamente, todos os espetáculos da sua Companhia – o Teatro do Mar –, desde a sua fundação, há 36 anos.

 

Participa frequentemente em conferências, nacionais e internacionais, sobre teatro de rua contemporâneo. É autora de um livro, atualmente no Plano Nacional de Leitura, e de outros projetos de escrita ainda em “fase de gaveta”.

 

A título pessoal, Julieta Aurora Santos recebeu um prémio da Costa Azul, pelos serviços culturais prestados na região e no país, e a sua companhia de teatro recebeu várias distinções, sendo que o maior reconhecimento tenha chegado sempre da sua cidade e do seu público, algo que contribuiu para que o projeto tenha sobrevivido durante 36 anos e tenha tido um significativo e amplo percurso nacional e internacional.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as artes?Sempre tive uma sensibilidade particular, desde criança. E o que, em algum tempo da vida, de certo modo me ostracizou, veio mais tarde a revelar-se na criação artística como algo de substancial e essencial para o meu espírito inquieto. Sou uma pessoa de ação. Quando tenho ideias, tenho muita pressa de as materializar e começo imediatamente a visualizar e a construir o caminho. De algum modo, expressar-me sempre fez parte da minha natureza.

 

E que influências?Tenho várias influências no meu caminho artístico e pessoal. É difícil resumir apenas algumas, nunca me fechei a nada, pelo contrário. Estou em permanente descoberta e busca para encontrar novas e melhores formas de fazer. Não acredito em linguagens estanques, nem ideias fixas. Gosto do novo, da mudança, de estar atenta ao mundo e à forma como me revoluciona e faz refletir. E gosto de pessoas, de projetos partilhados, de criar e construir em coletivo. O Teatro do Mar nasceu da vontade de dinamizar um projeto que formasse e sensibilizasse jovens para as artes performativas, mais particularmente o teatro. Fundei-o em 1986 com o entretanto falecido ator Vladimiro Franklin. Hoje, 36 anos depois, é uma estrutura que emprega cerca de uma dezena de pessoas a tempo inteiro, e contrata muitas outras ao longo do ano. Gradualmente tornou-se uma referência nacional na sua área de especialidade - o teatro de rua -, e passou a viajar por todo o país e estrangeiro.

 

De todas as intervenções no universo artístico, alguma que seja a de eleição?Claramente são as artes performativas, nomeadamente a encenação, porque reúne um pouco de tudo. Comecei pelo teatro, mas o meu trabalho foi sendo cada vez mais multidisciplinar ao longo dos anos. Fui associando ao teatro a diversidade do que mais me apaixona, a dança, o circo, as artes visuais, de forma transversal. Todas estas disciplinas são ferramentas que, associadas, me permitem expressar uma visão num sentido mais amplo e diverso. Hoje tenho dificuldade em catalogar o meu trabalho, mas também não me parece essencial que o faça.

 

E a escrita, que espaço ocupa na vida de Julieta?A escrita é a minha paixão mais antiga. Mas para a desenvolver é preciso dedicar-lhe tempo e disciplina. Não basta a inspiração e o “jeito para a coisa”. Como tudo, exige trabalho e dedicação. Nem sempre tenho o que gostaria. As ideias estão cá, mas faço-o de forma livre e espontânea, sem qualquer pretensão. Sei que vou regressar ao lugar da escrita em dias, por vir, mais tranquilos. Não sou impermeável à velocidade destes tempos. Tenho a sensação, muitas vezes, de que tudo me foge. Tenho o privilégio de viver na proximidade do mar. O horizonte aberto permite-me uma respiração que não teria longe dele. Traz-me a paz necessária para uma reflexão mais profunda das coisas.

 

A lenda do menino da gralha: que livro é este?  O texto nasceu de uma lenda local, da Ilha do Pessegueiro, em Porto Covo, da qual só existe um parágrafo. Adaptei a lenda a uma peça para um espetáculo, num projeto que visava a preservação e sensibilização para o nosso património imaterial. O espetáculo homónimo viajou muito e saiu do país até ao Brasil. Em todo o lado, o público perguntava como poderia ter acesso ao texto. Há uma universalidade nele que o tornou maior e a chegar a mais pessoas. Resolvi enviá-lo a algumas editoras e acabei por me decidir pela Simon’s Books, sediada no Alentejo. Assim nasceu o livro. Um ano depois era selecionado para o Plano Nacional de Leitura. Para além da criação do Teatro do Mar, já foi representado, num mega espetáculo, por quase 2000 crianças e surgiu um convite para fazer um filme de animação. É muito bonito assistir ao crescimento de uma obra que começou no imaginário coletivo, passou por mim à escrita e agora se amplia ao mundo. Vive quando deixa de nos pertencer.

 

MAR – Mostra de Artes de Rua. Que projeto é este?A M.A.R. – Mostra de Artes de Rua é um projeto do Teatro do Mar dirigido, artisticamente, por nós, coproduzido com a Câmara Municipal de Sines e apoiado pela DGArtes/Ministério da Cultura. De caráter internacional, o programa promove e sensibiliza para as artes de rua contemporâneas em toda a sua diversidade disciplinar e estética. Apropriação, reivindicação, requalificação do espaço público, valorização e criação de memória, sentido de comunidade e partilha através das artes de rua, são propósitos, entre outros, da M.A.R., desde a sua primeira edição, numa afirmação e crença de que a arte pensada para o espaço público cumpre um lugar fundamental na democratização do seu acesso. Os muitos anos a circular pela Europa em Festivais Internacionais de Teatro de Rua deu-nos um conhecimento que urgia se refletisse um pouco mais para além da criação artística. Há muito que desejava e trabalhava para conseguir implantar um festival de artes de rua na minha cidade e região. O Norte tem muito mais oferta, comparativamente com o sul do país. De certo modo, foi um crescimento natural na expansão do projeto que é o Teatro do Mar, que se manifesta em muito mais atividade, para além dos espetáculos que cria e produz. Agora, a M.A.R. já começa a afirmar-se, tem milhares de espetadores, e, com ela, estamos a crescer e a ganhar maturidade na área da programação. Mas não nos vamos ficar por aqui, já estamos a trabalhar num novo projeto para a cidade, que continuará a afirmar Sines como um porto e um polo para as artes de rua contemporâneas.

 

Como foi “casar” a literatura com o Teatro do Mar?A escrita está implícita em todo o meu trabalho. Fazemos um trabalho de autor, e não de repertório. A dramaturgia é a base de toda a criação artística da Companhia, mesmo que o resultado seja, na sua esmagadora maioria, não verbal. Isso dá-me práticas de leitura e de escrita constantes.

 

Que papel desempenha o Alentejo na produção artística de Julieta Aurora Santos?O Alentejo é a minha raiz. Mas é especificamente Sines, com os seus contrastes entre tradição e modernidade, paisagem natural e industrial, vila piscatória e centro com caraterísticas urbanas, a base influenciadora de todo o nosso trabalho. E o facto de vivermos junto ao mar também nos diferencia de outras estruturas do interior da região. O mar é aquilo que nos dá nome e a essência de toda a nossa cultura.

 

Dos trabalhos desenvolvidos alguns que tenham sido mais marcantes?É uma questão sempre difícil de responder, em mais de três décadas de trabalho e com cerca de uma centena de criações. Talvez seja mais fácil assinalar projetos que marcaram uma viragem nos caminhos da Companhia. Daimonion, inspirado em Faust de Goethe, o nosso primeiro espetáculo de grande dimensão, que correu toda a Alemanha e tantos países europeus; Nusquam, um espetáculo de grande formato, talvez o que mais viajou pelo mundo; A Lenda do Menino da Gralha, pela poesia e o quanto chegou aos públicos infantis; A Idade do Silêncio, pela subtileza da linguagem na abordagem às sensíveis questões da decadência do corpo e da terceira idade; e todos os espetáculos com a comunidade, pelas histórias e laços que criaram.

 

Alguns acontecimentos insólitos ao longo do trajeto artístico?Há tantos. Estar na Alemanha ou na Polónia e fazer espetáculos para milhares de espetadores, debaixo de chuva torrencial, ou sobreviver a um incêndio que destruiu grande parte do nosso património e arquivo histórico, e erguer tudo de novo, das cinzas. Estes são alguns exemplos. A história do Teatro do Mar e a minha história pessoal, inevitavelmente, misturam-se. Mas se há palavra que define este trajeto é a palavra “resiliência”.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?Estou em fase de investigação e de escrita dramatúrgica para uma nova criação do Teatro do Mar que se chama NUMB, que quer dizer apático, dormente, incapaz de sentir, e diz respeito a um dos sintomas da sociedade contemporânea, que é a apatia. Estou a escrever um novo livro para a infância. Simultaneamente, estamos em pós-produção da M.A.R. e em pré-produção de um grande projeto a anunciar em breve. Aguardamos resultados da candidatura aos apoios da Direção Geral das Artes, e continuamos na estrada, em tournée, com dois espetáculos diferentes.

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