Diário do Alentejo

João Céu e Silva: "O autor só se completa através do leitor"

15 de novembro 2022 - 09:00
João Céu e Silva é o vencedor da 3.ª edição do Prémio Literário Joaquim Mestre
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Nascido em 1959, licenciado em História, com atividade jornalística no “Diário de Notícias”, onde editou várias secções, fez reportagem, crónica, notícias e entrevistou a maioria dos políticos e escritores portugueses, bem como dezenas de estrangeiros.

 

O Festival Literário Escritaria concedeu-lhe, em 2021, o Prémio Carreira devido a esse percurso na imprensa escrita. Publicou ficção a partir de 2002, com o romance 28 Dias em Agosto, a que se seguiu A Sereia Muçulmana (Prémio Alves Redol), A Hora da Ilusão, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Adeus África e Adeus Casablanca e Guadiana (Prémio Joaquim Mestre).

 

Para além da ficção, tem publicações na valência da investigação literária na série Uma Longa Viagem Com José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga e Vasco Pulido Valente; na investigação histórica: 1961 – O Ano Que Mudou Portugal e 1975 – O Ano do Furacão Revolucionário, entre outros. 

 

Eis João Céu e Silva, vencedor da 3.ª edição do Prémio Literário Joaquim Mestre, na primeira pessoa.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras? Desde a universidade que desejei escrever ficção, paixão que surge da vida cultural que me rodeava; seguindo-se o jornalismo, de modo a poder ter alguma intervenção social.

 

Com intervenção em várias valências da escrita, qual o registo de eleição? O jornalismo está sempre em primeiro lugar e só depois vem a investigação histórica e a literária. Quanto à ficção, é uma forma de abranger o que não pode ser retratado através da realidade. 

 

Onde se vai beber a inspiração? No jornalismo, vem diretamente da sociedade e do seu pulsar. Na investigação, da vontade de deixar um registo para as próximas gerações de quem fomos no meu tempo de vida. Na ficção, é diferente. Surge uma frase inicial, um facto ou uma história e o romance vai começando a nascer. Escrevo as primeiras páginas e se me convencer do seu interesse enquanto leitor, continuo até estar a narrativa completa. No caso deste livro, do Guadiana, a semente surgiu de uma visão: a do rio Guadiana. Tirei a palavra “rio” e ficou só a imensidão do Guadiana e a sua capacidade de encher os olhos de quem o vê.

 

O que levou João Céu e Silva a participar na 3.ª edição do Prémio Literário Joaquim Mestre?

Ganhar um prémio literário não é a principal intenção quando estou a escrever. Guadiana ficou pronto, esperou pelas releituras e foi guardado. Quando soube deste prémio, lembrei-me de pôr o texto à prova. A razão era simples: ser julgado pelo júri da Assesta, a Associação dos Escritores do Alentejo. Quem melhor do que os da região para dar razão à existência de um romance senão esses meus pares? Se gostassem, era porque o livro mereceria ser publicado. Se não, ficaria na gaveta pois não faria falta.

 

Guadiana. Que obra é esta? O romance surge de um grande levantamento a título pessoal que fiz durante dois anos sobre os anos das lutas agrárias no pós-25 de Abril, que nunca foi publicado por desinteresse das editoras. Em 2020, pediram-me para fazer uma reportagem sobre a Barragem de Alqueva e os seus efeitos na vida do Alentejo. Ao fim do dia, senti que havia uma história para contar, a que unia as memórias entre esse levantamento e o presente. O confronto com as minhas memórias de anos pelo Alentejo fez logo nascer esse par de protagonistas, cuja vida mudara bastante e que precisavam de recuperar a sua adolescência. Fiquei com essa ideia após percorrer dezenas de quilómetros das margens do lago artificial, desde a aldeia de Alqueva à da Luz, e recordar muitas histórias ouvidas em reportagens e visões de um mundo que se transformara mais do que imaginava. O primeiro rascunho foi escrito em dois meses de tão formada que estava a história; depois, mais um ano para reescrever e finalizar a história como queria que fosse contada.

 

Que papel desempenha o Alentejo na escrita e no imaginário de João Céu e Silva? Muito do cenário do romance deve-se ao conhecimento profundo da história do Alentejo devido às sucessivas reportagens, campanhas eleitorais, e à construção da própria barragem, que acompanhei desde quando não passara, durante muitos anos, de um muro de contenção das águas e até à sua inauguração. Sendo visitante regular durante décadas em trabalho, percorri o Alentejo dezenas de vezes e de uma ponta à outra. O melhor exemplo que posso dar é ter passado pela estrada que leva ao Escoural e ter reparado que a vegetação tinha crescido devido à chuva que caíra entre a segunda e a sexta-feira.   

 

Como convive o João Céu e Silva, crítico literário, com o João Céu e Silva, autor literário?   Sem problemas, a não ser que na maior parte das vezes considero que o romance que acabei nada acrescenta ao panorama da literatura e desisto de o publicar. A única razão que faz com que dê o livro para editar é acreditar que não fará mal ao leitor.

 

Que opinião sobre o universo literário em Portugal? Não vejo com bons olhos o estado da edição portuguesa. Existem demasiadas editoras generalistas que publicam no total mais de mil títulos por mês, pouco cuidado no acompanhamento dos autores, seja na edição de cada obra como no percurso, demasiadas experiências com livros que não interessam a quem compra livros e, principalmente, uma despreocupação geral com a fixação dos leitores regulares e no ignorar a necessidade de sedução de novos leitores.

 

E o acordo ortográfico? Sou dos que pouco têm contra a atualização. O que seria da língua portuguesa, se em cada século se mantivessem as regras do anterior!? Concordo que houve uma grande ligeireza nas ‘novidades’ e que a sua explicação foi péssima, no entanto basta olhar para as grandes línguas que prevalecem no mundo – a nossa está entre as primeiras – e nenhuma delas se deixou ficar para trás. Não quero os exageros que deformam o português no Brasil, mas precisaremos sempre de aperfeiçoamentos. 

 

Algumas histórias vividas ao longo do percurso de jornalista? Houve de tudo, mas nunca esquecerei uma viagem a Paris para entrevistar o Nobel da Literatura Patrick Modiano: esperei à sua porta durante mais de duas horas até que apareceu, com os sacos do supermercado nas mãos. Como a entrevista tinha sido marcada com muita antecedência, esquecera-se e fora às compras. Pediu imensas desculpas e deu-me o dobro do tempo para uma conversa excecional.

 

E de autor? A notícia de que recebera o Prémio Literário Joaquim Mestre - não estava à espera e foi uma bela surpresa. Depois, o encontrar leitores que leram os meus livros e querem conversar sobre eles. O autor só se completa através do leitor.  

 

O que está na “manga”? No segundo trimestre do próximo ano deverá sair o sétimo volume da série Uma Longa Viagem, que, se correr tão bem como o anterior, chegará às três edições e seis semanas entre os livros mais vendidos. Quanto à ficção, tenho um novo romance a dormir na gaveta, que abrirei quando tiver terminado este de não-ficção e que, se continuar a gostar dele, será hora de o rever e reescrever até me considerar satisfeito.

 

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