Diário do Alentejo

Crónica: "Jacques, o Fatalista"

04 de novembro 2022 - 14:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

Figura central do Iluminismo, Denis Diderot expressa, em Jacques, o Fatalista, um determinismo existencialista próprio da época, através de Jacques, o protagonista, que acredita cerimoniosamente que tudo o que acontece cá em baixo foi determinado antecipadamente lá em cima. Jacques é o criado particular de um amo sem nome e os dois viajam pela França rural, com destino a um lugar indefinido. Como forma de mitigar o tédio da viagem, o amo de Jacques exorta-o a contar a história de como se apaixonou.

 

O criado consente e a narrativa povoa-se com personagens estranhas, incluindo com o próprio leitor, ou um alter ego seu, que se intromete na história e não se coíbe de questionar, em discurso directo, o próprio narrador. Jacques conta episódios divertidos, mas também entrelaçados por observações filosóficas, acerca de sexo, amizade, paixão, hedonismo e outros temas; todavia, é constante e abruptamente interrompido por contratempos inesperados (ou absurdos) que ambos encontram ao longo do caminho e pelo narrador, a entidade que verdadeiramente determina o ritmo da narrativa.

 

Na primeira história, Jacques descreve com escrupulosos detalhes como se feriu em combate e se arrastou até uma quinta, julgando que não sobreviveria. A esposa do lavrador deu com ele, levou-o para casa e chamou um cirurgião, de cujo alcoolismo e personalidade excessiva Jacques se recorda perfeitamente. Nesse instante, o amo interrompe-o para reflectir acerca da vida, do amor e do destino.

 

As reflexões não se alongam, porque os dois depressa se apercebem de que algumas das suas posses ficaram para trás, nomeadamente a bolsa e o relógio. Jacques regressa para os recuperar e dá início a uma excursão quixotesca. Enquanto o criado está ausente, o cavalo do amo é roubado. O narrador divaga sobre a possibilidade de ambos não terem estado, de facto, a viajar a cavalo. Um pormenor, dir-se-ia, e, no entanto, é de extrema relevância, uma vez que o aparte do narrador acaba por expor ao leitor os mecanismos de construção do romance e recorda-o de que se encontra perante uma produção ficcional, pelo que não deve tomar como verdadeiras todas as informações que lê.

 

Estratégia usual, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, era verdadeiramente inovadora na prática literária setecentista. Jaques regressa a tempo de retomar a narrativa, ainda que por breves instantes. Logo depois, é de novo interrompido pelo narrador, que deixa expressa a opinião de que as histórias verdadeiras são sempre maçadoras, a menos que sejam contadas por um extraordinário contador de histórias. Após, devolve a palavra a Jacques, para de seguida o interromper uma vez mais, desta feita para confessar que lhe parece que o destino de Jacques será a morte por enforcamento. Impassível, o criado retoma o fio à meada e dá ordem de prosseguimento da narrativa, embora se continue a ver, a todo o instante, interrompido.

 

Quando, por fim, se aproxima da conclusão da sua narrativa e se prepara para revelar como se apaixonou, dá início a uma discussão com o amo, acerca de quem está, em boa verdade, ao comando dos destinos dos homens. Várias peripécias mais tarde, o amo apercebe-se de que Jacques é um indivíduo de duas caras e os dois batem-se em duelo. Jacques acaba preso e o narrador dá por terminada a narrativa… até se lembrar de que por pouco não descurara um episódio fulcral da história: o momento em que um amigo de Jacques paga a caução e este, uma vez livre, reencontra o amor da sua vida, com quem contrai matrimónio. Então, sim, o narrador conclui o romance.

 

Todavia, acima deste encontra-se, claro está, o autor, e antes que o leitor feche o livro, coloca em suspenso a sugestão de que o final feliz, paródico e estereotipado, típico do século XVIII, com que o narrador epilogou a narrativa está longe de encerrar as façanhas das suas personagens. Diderot deixa claro que o destino dos homens nunca é revelado na extensão de um romance e que a interrupção compulsiva de qualquer história deixa sempre acontecimentos por contar. Fiel à genologia iluminista, Diderot deixa antever que há sempre algo mais para lá da linha de fundo da narrativa, uma matéria que não cabe nos limites da literatura.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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