Diário do Alentejo

Crónica: "Crime e Castigo"

23 de outubro 2022 - 12:30
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Texto Rodrigo Ramos 

 

Parecer-nos-á escusado afirmar que Crime e Castigo, o segundo romance que Dostoiévski publica após o cumprimento de uma pena de dez anos de prisão na Sibéria, é considerado uma obra suprema da literatura mundial. De extensão longa, anuncia ao que vem imediatamente a partir do título, o que parece enfraquecer a surpresa da obra. Não obstante, para aqueles que se recusam a ler o romance por acreditarem que todo o enredo se resume no título, importa deixar claro que nem o crime, que ocorre na primeira parte do romance, nem o castigo, que surge centenas de páginas mais tarde, no epílogo, são o verdadeiro foco da obra. Pelo contrário, o verdadeiro interesse reside na tragédia que decorre precisamente entre estes dois polos, na exploração da psicologia penetrante de um criminoso.

 

A narrativa de Crime e Castigo acompanha Raskólnikov, um jovem estudante, pobre e amargurado, que planeia assassinar friamente uma usurária idosa, habituada a levar a cabo a sua actividade no conforto do seu apartamento, em São Petersburgo. Raskólnikov deixa-se levar pela convicção de que, com o dinheiro que roubaria após o assassinato, conseguiria alcançar a desejada libertação social e, como homem de estatuto elevado que então seria, se dedicaria a acções de grande nobreza, que em muito beneficiariam a sociedade russa. À luz desta crença, convence-se firmemente de que certos crimes são justificáveis, se tiverem como propósito a remoção dos obstáculos que impedem que homens extraordinários realizem feitos dignos e louváveis.

 

O orgulho de Raskólnikov separa-o do resto da sociedade. A alienação ergue uma barreira que o impede de se ver como os demais. O jovem crê-se superior aos restantes e essa convicção impede-o de se relacionar com quem quer que seja. Do cume da sua superioridade, observa os outros e vê-os como instrumentos para atingir os seus fins. Desta elevação alucinada resulta um complexo de super-homem; Raskólnikov julga-se um indivíduo extraordinário e, por esse motivo, acima das regras morais que governam a humanidade. O assassinato da usurária é, na verdade, uma consequência da convicção de que está, de facto, acima da lei e é, em certa medida, uma tentativa para testar a validade de tal premissa.

 

No entanto, após cometer o crime, o complexo de super-homem dá lugar a um asfixiante sentimento de culpa. Embora assuma, com estupefacção, a incapacidade de viver de acordo com os princípios de superioridade moral que idealizara, recusa-se a ver destruída a sua natureza superior em virtude dessa falência. Assim, continua a resistir à ideia de que, afinal, não é menos medíocre do que o resto da humanidade, e insiste na apologia de que o assassinato era justificável.

 

Contudo, o seu isolamento intensifica-se de dia para dia, à medida que a violência da culpa e do delírio aumentam. Tomado pelo desespero e pela culpa aflitiva, Raskólnikov afasta todas as pessoas que o poderiam ajudar, incluindo Sónia, uma prostituta com quem estabelece uma relação de amizade. A cada separação, isola-se cada vez mais e sofre com isso. No final, a alienação tornar-se-á insuportável. Só no epílogo, através de Sónia, é que o jovem derruba a sua parede de orgulho e de egocentrismo que o mantinha terrivelmente só; nesse momento, consegue libertar-se do seu complexo de super-homem e, por fim, alcançar a única redenção possível.

 

Crime e Castigo abre-nos as portas do mundo íntimo de um criminoso, para nos dar a ver os seus dilemas, os seus delírios, as suas dúvidas e incertezas, o medo e o desespero. O crime e o castigo intitulam a obra, mas não são os temas do romance. As consequências imediatas do crime não são a principal preocupação do autor, mas antes a forma ansiosa com que o criminoso lida com o tormento da culpa. Dostoiévski parece sugerir que a tortura mental, o receio de ser capturado, os planos atabalhoados que vai engendrando para o evitar, aquele nódulo de desespero excelso que força o criminoso a confessar o seu crime ou a ceder à loucura são um castigo bem pior do que a prisão.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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