Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: O sopro do Outono

22 de outubro 2022 - 14:00
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O que é bonito neste mundo e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura...

(Miguel Torga)

 

O outono irrompe nas nossas vidas. E quase nem damos pela sua chegada, somente quando na nossa travessia deparamos com um tapete de folhas caídas das nossas memórias, das lembranças dos tempos vividos.

 

Agora, de repente, na entrada da nova estação, o sol outonal vem banhar os vinhedos com a voluptuosidade dos tons quentes, que servem de moldura ao quadro onde nos encontramos inseridos. É nesta visão onde os dias são claros e mais frios e o entardecer revela uma beleza e luz própria que o convite é feito para encararmos as nossas mazelas, sem rodeios, para que o confronto com a verdade da próxima estação possa ter um efeito mais tranquilo e que seja uma ocasião para o reencontro com o self, como defendia Carl Jung.

 

A brisa outonal sopra a nossa alma com os seus desafios e reflexões, tomadas de consciência, reciclagens e recomeços. A Terra manifesta-se das entranhas, ecoa das profundezas. E no céu, o tom harmonioso e o ritmo melódico abalam os nossos ouvidos com a música da verdade, consciência e acção. É neste momento, em que somos chamadas a fazer um balanço e sentimos que ficámos aquém dos nossos sonhos.

 

Há dias e estações da nossa vida em que nos sentimos mendigos de nós mesmos. Esperamos o que acabou por não acontecer. Parafraseando Marguerite Duras, “muito cedo na minha vida foi tarde de mais”. Esta melancolia derramada nas nossas almas, este sentir que nossa luz interior que outrora brilhava se tornou difusa, dispersa e sem alcance.

 

Podemos por isso, concluir que não depende necessariamente da verdade, os outonos interiores que atravessamos. Normalmente, troca-se a doçura que não conseguimos, por um tipo de acidez cáustica, uma fatalidade quotidiana a que nada nem ninguém escapa, e que se vai espalhando entre a ironia e a amargura, contaminando tudo. Ao invés disso, podemos entender a lógica Torguiana que «a doçura que se não prova/se transfigura numa doçura/muito mais pura/e muito mais nova».

 

E nos lembrarmos da consoladora verdade, que foi graças à persistência de um povo, cujas faces desenhadas em socalcos de sacrifício, fez nascer a mais bela paisagem humana, em que as vinhas descem dos céus, numa escadaria imensa até ao rio, para irrigar as nossas almas com o elixir paradisíaco, o miraculoso néctar no alto Douro vinhateiro, que nos levará ao encontro da máxima de Albert Camus: “ no meio de um inverno eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível...”

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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