Diário do Alentejo

Iris Ferreira: “Muitas vezes, a dança é simplificada a ‘um passinho de dança’, quando é algo muito mais profundo que isso”

22 de outubro 2022 - 12:00
Foto | DRFoto | DR

Tem 29 anos, é natural de Almada, e deste tenra idade que está ligada ao universo da ginástica e das artes performativas. Aos 16 anos realizou o seu primeiro curso de treinadora, pela Federação de Ginástica de Portugal (FGP). Mais tarde, licenciou-se em Dança, pela Faculdade de Motricidade Humana.

 

Seguiu-se um ano de estudos por terras de Espanha, no Conservatório Superior de Danza de Málaga; uma Pósgraduação em Dança Contemporânea; e a frequência do Mestrado em Artes Cénicas, as duas últimas efetuadas na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (Esmae).

Ao longo do seu percurso artístico, participou em várias representações nacionais no estrangeiro, obteve menções de ouro em competições nacionais pela FGP e apresentou e participou em trabalhos no Teatro Rivoli, pela Esmae.

 

As atividades de bailarina e professora de dança contemporânea têm prevalecido na sua carreira, tendo desenvolvido projetos com faixas etárias distintas, com pessoas portadoras de diferentes graus de deficiências e em diversos contextos sociais.

Atualmente, através do Musibéria, cria coreografias para grupos de competição e leciona aulas de dança em todo o concelho de Serpa, tendo alunos dos 3 aos 85 anos de idade.

 

Eis Iris Ferreira, na primeira pessoa.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Quando, e como, o gosto pela arte da dança e da ginástica começou a ganhar protagonismo? Eu sempre estive presente em ginásios, estúdios e pavilhões. Os meus pais são professores de educação física e treinadores de ginástica. Sendo eles ex-ginastas e treinadores, cresci numa casa muito ativa e tive a oportunidade de experienciar vários desportos. Também tínhamos o culto de assistir a espetáculos. Ainda me lembro de assistir aos bailados na Gulbenkian. Quando era pequena, enquanto os meus pais lecionavam as aulas de ginástica, eu brincava nos aparelhos e com os aparelhos. Ao ter idade para entrar numa classe, passei a ter um treinador. Entretanto iniciei-me na ginástica rítmica e no ballet clássico. Mais tarde, na adolescência, ganhei interesse no hip-hop, principalmente em bboying, e na dança contemporânea. A partir daí, participei em várias formações e gostei tanto da área que decidi seguir a minha formação académica dentro do meio, especializando-me em dança contemporânea.

 

Dos trabalhos já desenvolvidos, algum ou alguns a destacar? Existem vários e por motivos diferentes. O grupo que mudou a minha vida foram as Sibilas. Graças a elas cresci imenso como pessoa e profissional. Participámos em competições e viajámos e dançámos em vários locais na Europa. Também algo me marcou muito, e que sinto muita saudade, foram todos os projetos com o grupo MD5. Realizávamos animações e espetáculos de dança em feiras históricas. São a minha família do Norte. Divertíamo-nos imenso, tanto nos ensaios, como nas atuações, viajámos por Portugal inteiro, e foram essas pessoas que me fizeram sentir em “casa” enquanto vivi no Porto.

 

Dentro do universo da dança e dos vários “papéis” desempenhados (coreógrafa, bailarina, professora, ginasta, entre outros), há algum com o qual exista maior afinidade? Todos esses “papéis” estão interligados e acredito que tenham de estar sempre conectados para tirarmos o melhor proveito de cada um deles. Contudo, como coreógrafa, posso colocar no “outro” movimentos ou conceitos que eu não possa realizar, ou criar movimento para alguém que não se possa mover. A imensidão de possibilidades que a criação coreográfica oferece é algo que me intriga e interessa muito.

 

Como é que uma artista de Almada, radicada no Porto, vem “desaguar” ao Alentejo? Tal como a maioria das pessoas, devido à pandemia, tive de tomar uma decisão. Apesar de ser de Almada, estava a viver no Porto por motivos académicos e profissionais. Ao ver o meu trabalho parado e as despesas a continuar a chegar, concordando com o meu companheiro, optámos por vir para Brinches, concelho de Serpa. Ambos os nossos avós são de cá, já conhecíamos a zona, teríamos a possibilidade de estar num local com menos despesas e, em princípio, conseguiríamos algum tipo de emprego. Felizmente, ambos conseguimos nos manter a trabalhar nas nossas áreas profissionais. Diria que o universo conspirou em nosso favor e, no meu caso, o Musibéria contactou-me no momento certo.

 

Musibéria – que projeto é este? O Musibéria é um centro de apoio à criação artística e à formação nas áreas da dança e da música a partir da matriz cultural ibérica e da sua diáspora. O Musibéria propõe uma oferta formativa regular e variada, através dos laboratórios de dança e música dirigida a diversas faixas etárias, mas também promove oficinas pontuais, abertas ao público em geral. Do ponto de vista do apoio à criação artística, acolhe residências artísticas e tem uma programação regular de espetáculos de dança e de música, com entrada gratuita. O centro dispõe também de um estúdio de som, onde diversos músicos vêm gravar os seus trabalhos, e duas editoras discográficas: Respirar de Ouvido e Marisco Sonoro.

 

E qual o papel da Iris neste projeto? O meu papel no Musibéria enquadra-se na oferta formativa, mais precisamente, sou responsável pelas aulas de dança criativa, dança contemporânea, e pelo projeto “Dança Maior”, através do qual leciono aulas de dança aos seniores em todas as freguesias do concelho de Serpa, atualmente inserido no CLDS (Contrato Local de Desenvolvimento Social) de Serpa.

 

Qual a opinião sobre o universo da dança em Portugal e no Alentejo? Posso estar enganada e estar a experienciar as coisas a um nível micro, mas sinto que, por um lado, aqui no Alentejo existe muita falta de educação cultural e que, por outro lado, não existe uma adaptação correta e inteligente da arte e do desporto à cultura local. Para que exista público para aulas e espetáculos é necessário que esse mesmo público entenda a sua importância e sinta o benefício de participar em tais atividades, tornando-se uma rotina do dia a dia. Mas para tal acontecer é fundamental a existência de atividades de dinamização e educação cultural. Também, relativamente a aulas e espetáculos, tais atividades e infraestruturas precisam de ser acessíveis e adaptadas ao público. Aqui no Alentejo, as infraestruturas e as redes de transportes públicos são escassas, e a comunicação também não é a melhor, influenciando a procura e a oferta de atividades culturais e desportivas. A cultura e o desporto não são apenas para um nicho de pessoas, são para todos.

 

Para lá do glamour dos palcos, como são os “bastidores” do bailarino? Dependendo do percurso escolhido, as dificuldades são diferentes. O que é transversal em qualquer ramo da dança são muitas horas de treino, muitas horas de estudo e muitas horas de recuperação. Sendo o nosso corpo o nosso instrumento de trabalho, é essencial cuidarmos dele e proteger a sua longevidade mecânica. Acredito na responsabilidade do nosso trabalho, como professores, de dominarmos, além das técnicas de dança que propomos, as áreas de pedagogia e anatomia/cinesiologia, de modo a transmitirmos ensinamentos corretos e protegermos a integridade física e psicológica dos nossos alunos. Muitas vezes, a dança é simplificada a “um passinho de dança”, quando é algo muito mais profundo que isso. A dança como profissão, não é algo sério aos olhos de muitos, e cabe-nos, enquanto profissionais, dignificar a profissão com maturidade e excelência. Seja através do nosso discurso, seja através do trabalho e do papel que desempenhamos. Somos nós que temos de demonstrar como o nosso trabalho pode, e impacta, o outro. Se não formos nós, ninguém o fará.

 

Alguns momentos inusitados experimentados ao longo do percurso artístico? Já me aconteceu e assisti a muita coisa, mas resumindo: muitas quedas, esquecimentos em palco que levam a improvisações insólitas, ser atingida por objetos que faziam parte da coreografia, figurinos vestidos do avesso ou que se rasgaram em cena, públicos que dançam connosco.

 

Que conselhos para os que sonham com uma carreira no universo da representação? Trabalho de casa. Frequentar duas ou três aulas por semana, dependendo do quanto queremos evoluir, por norma, não é o suficiente. Seguirmos um percurso académico em dança também poderá não ser. Tudo aquilo em que queremos evoluir, seja no corpo ou na mente, é responsabilidade nossa e temos nós que o fazer. As aulas, cursos ou o percurso académico, oferecem-nos ferramentas e recursos incríveis, mas temos de descobrir como utilizar e aplicar tais coisas no percurso que decidimos tomar. Na dança, além dos diferentes “estilos” que existem, temos várias vertentes que podemos seguir: performance, pedagogia, terapia, trabalho social, criação, investigação, etc. Fora isso, dado que passamos a maior parte do tempo útil no nosso emprego, pessoalmente prefiro fazê-lo numa área que goste. E isto é algo que se aplica a qualquer setor profissional. Acima de tudo, sejam principiantes ou profissionais, divirtam-se e desfrutem do processo.

 

Que sonhos e ambições artísticas moram em Iris Ferreira? Entre outros projetos, gostaria de retomar a algo que estava a construir no Porto, antes da pandemia nos atingir. Gostaria de criar uma companhia de dança e oferecer a oportunidade de apresentar projetos no Alentejo e fora do Alentejo. Poder oferecer novas experiências e criar um grupo unido. Fomentar a empatia, a criatividade e a fisicalidade Acima de tudo, conseguir criar o gosto e importância da dança no quotidiano em Serpa.

 

 

Comentários