Diário do Alentejo

Roberto Pepez: "Tocar, compor, dirigir, ensinar, são órgãos do mesmo corpo, quando o músico integro"

07 de outubro 2022 - 13:00
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Roberto Perez, cidadão ítalo-argentino, nasceu em Buenos Aires, em 1958. Estudou numa escola técnica, especializada em química, mas desde criança esteve vinculado à música. “A minha mãe colocava-me no seu colo para juntos lermos uma canção muito simples que vinha na última página de uma revista para crianças (Anteojito)”.

 

Depois vieram os estudos sistemáticos de guitarra, com o professor italiano António Bava, de piano e composição com os mestres Zbigniew Neuhoff (polaco) e Jacobo Ficher (ucraniano). Os estudos musicais evoluíram na Universidade Nacional de La Plata e na Faculdade de Artes e Ciências Musicais da Universidade Católica Argentina, onde concluiu a licenciatura em Direção de Orquestra.

 

Durante este trajeto académico, formou a própria orquestra de cordas, a qual dirigiu até deixar a Argentina. Foi também ainda no seu país que começou a dar aulas como ajudante na faculdade onde se formou e na Universidade do Museu Social Argentino.

 

Em 1987 viajou para o Brasil, onde ganhou um concurso para dar aulas de direção na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia(UFBA) e para dirigir o Madrigal Júnior, grupo vocal de elite, de onde saíram excelentes profissionais, de que é exemplo Maurício Brandão, atual diretor da Escola de Música da UFBA. Um azar político-económico em território brasileiro fá-lo deixar a terra de Jorge Amado e regressar ao ponto de partida.

E é na Argentina, nos inícios de 1988, que é indicado como titular para dirigir dois teatros de ópera, mas a sua neutralidade e honestidade política fez com que o acesso a estes cargos estivesse comprometido. Em setembro desse mesmo ano, Portugal foi o destino que se seguiu, onde vivia, e vive, o seu amigo e mentor, Christopher Bochmann. Por terras lusas, dirigiu orquestras em Lisboa, Almada, Torres Vedras, Castelo Branco, Leiria, Portalegre, Elvas, Beja, Mirandela, Aveiro, Madeira, Açores, Viana do Castelo, Olhão, Castro Verde, Évora, Loulé ou Famalicão.

 

Por cá também foi professor da Universidade de Aveiro, da Universidade de Évora, do Instituto Superior Afonso III e da Escola Superior de Música de Lisboa. Nesta última, a ligação mantém-se até a atualidade, conciliando com as disciplinas teóricas que leciona na Escola Profissional de Música do Vale do Ave.

 

Em 2009 terminou o doutoramento em Música e Musicologia, na Universidade de Évora. Ao longo do seu percurso editou livros, gravou discos, ajudou a formar e a fazer crescer pessoas com música dentro delas, mas, acima de tudo, diz-se feliz por ter “partilhado algum conhecimento e o amor por fazer música.”

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Quando e como surgiu o gosto pela música? A minha mãe tocava piano, os familiares italianos que tinham migrado para a Argentina cantavam canzonetas, árias de ópera, apesar de não saberem ler nem escrever. O meu pai adorava cantar tangos e tocar harmónica. A música esteve presente na minha vida, desde que eu tenho memória, e o facto de ver as primeiras pautas ao colo da minha mãe, antes de aprender a ler e a escrever, terá influenciado algo.

 

Como foi o percurso até chegar a maestro? A palavra maestro na Argentina, na Espanha, na Itália, tem conotações bem mais profundas, significa “mestre”. E mestre é quem domina uma arte, uma disciplina. É quem sabe, é quem tem controlo sobre alguma coisa. Aqui, em Portugal, maestro é uma palavra banalizada e qualquer um que tenha contactos, influências, amizades, pode chegar a maestro, pode mandar, estar à frente, estar por cima, figurar, ter estatuto, quase como um cargo de diretor. Aprendi que os cargos, os títulos, demandam de nós maior responsabilidade e despersonalização, coisa que não vejo tantas vezes como desejaria. Quanto ao percurso, primeiro estudei muita música, toquei muito bem piano, estudei composição, análise musical, orquestração, leitura de partituras, estilos, história da música, história da literatura, das artes, filosofia, psicologia. Procurei aprender a dirigir-me a mim mesmo, a obter de mim a maior quantidade e qualidade de sumo e, paralelamente a isso, estudei com excelentes professores a arte da comunicação e a arte de chegar aos outros, num curso de direção de orquestra. Mas ainda estou a cometer erros de principiante, que tento ir superando com a prática, a paciência e a humildade. Ser maestro (ou diretor) é ser um paladim, um defensor da música, da partitura, e não um proxeneta que se vale da arte para obter algo em troca. Ainda lembro a primeira vez que fiquei em frente a uma orquestra (1982). Entre esta experiência e a última passaram 40 anos. As palavras-chave: amor, doação, humildade, curiosidade, procura, insatisfação constante e respeito.

 

Dos vários trabalhos/projetos desenvolvidos, há alguns a destacar? A atividade profissional e o consequente desenvolvimento de trabalhos, nos últimos 42 anos, foi muito intensa, rica e variada. Por isso, são vários os destaques. Desde as primeiras aulas em infantários e escolas públicas, até à orientação de doutoramentos e mestrados no âmbito universitário. Desde a minha prática como instrumentista, até à direção de orquestras de prestígio internacional. Desde escrever sebentas para as minhas aulas, até publicar nos Estados Unidos da América ou em Oxford. Mas há um que posso destacar de forma mais singular: em Castro Verde, dando seguimento a uma ideia que trazíamos na mala, em conjunto com a minha esposa, participei na criação e dinamização do Centro de Estudos e Divulgação Musical (Cedim). Nele desenvolvi atividades como conferências, cursos, oficinas, estreias, recorrendo aos meus recursos pessoais e recorrendo aos “amigos” que passaram por Beja, Olhão e Castro Verde de maneira graciosa e amigável, deixando uma estela de sabedoria no caminho. Lembro o caso do Dr. Enrique Cámara de Landa que ofereceu uma conferência fantástica, “El Tango, del arrabal a internet”. Se o Cedim tivesse continuado, o projeto era o de valorizar a música escrita pelo Conde da Esperança, da Vila de Cuba. Música que, entre outras coisas, inclui várias óperas, canções, fados... Eu próprio redigi um trabalho histórico, analítico, que segundo a minha amiga e cantora lírica bejense, Ana Paula Russo, é uma tese de doutoramento. Infelizmente, em 2019, o interesse político e hierárquico em apoiar o projeto extinguiu-se, embora eu tenha continuando a trabalhar nele até ao momento de deixar a Pax Julia.

 

 

Das várias intervenções no universo da música, alguma que seja a de eleição? Nunca pergunte a um pai se tem algum filho predileto. Tocar, compor, dirigir, ensinar, são órgãos do mesmo corpo, quando o músico é íntegro. Considero-me um humanista que dirige Beethoven como construindo uma catedral e dá uma aula de harmonia referenciando o teatro grego. O todo é maior do que a soma das partes. A única eleição talvez seja a entrega com que me debruço em cada atividade, em cada intervenção, como se essa fosse a última.

 

Como é colocar uma multidão de músicos e de instrumentos a produzir magia sonora? Epá, esta é forte e dura! Lembro que o meu professor de Química Orgânica IV, Ance Ariel Ochoteco, emprestou-me o livro de Hesse, O jogo das contas de vidro. Numa parte, o Magister Musicae toca uma fuga ao piano, depois de um ato de recolhimento, meditação. Parece que, segundo quem o observa, o protagonista do livro, Joseph Knetch, o mestre transfigurou-se em música. Se a nossa atitude é honesta, autêntica, vital, intensa, e, por algum processo indiscritível, conseguimos esta transfiguração nos ensaios, no concerto, na vida, então vamos ser capazes de doar, partilhar a nossa ideia com quem seja.  A emoção, quando é doada num ato de verdadeiro amor, é recebida por quem tem o coração aberto. O resultado é maravilhoso, mágico e esgotante.

 

Alguma situação inusitada vivida ao longo do percurso artístico? Era o ano de 1987, Sinfónica de Bahia Blanca, província de Buenos Aires. Ensaiávamos os “Quadros de uma exposição” de Mussorgsky – Ravel. Num momento, o concertino Salomão Rabinovitz pediu-me um tempinho para ensaiar o naipe dos primeiros violinos. Eu aproveitei para fechar os olhos e “meditar” por alguns segundos. Quando o mestre Salomão acabou, tocou com o seu arco a minha perna. Eu, que devia estar “meditando” profundamente, acordei sobressaltado e falei: “Para mim, sem açúcar!” Toda a orquestra desatou a rir.

 

Como está o estado da arte em Portugal e no Alentejo? Embora tenha andado e trabalhado pelo país todo, custa-me hoje fazer uma avaliação nacional. Prefiro falar sobre o Alentejo, o Baixo Alentejo. Vejo com pena a falta de reconhecimento, por parte das instituições nacionais, na hora de dividir o bolo entre os irmãos ricos e pobres. O cinema? Não existe. O teatro? Vai resistindo. As artes plásticas? Estão sendo sepultadas nos terrenos onde deveria haver escolas de arte e galerias. Tenho saudades do António Inverno, aluno do Mestre Manuel Lima. A música? Vai tentando cantar “modas” e tocar viola campaniça nas mãos do Paulo e do Rui, até passarem de moda. A educação musical parece-me que está cada vez mais burocratizada. Os professores são funcionários que tentam funcionar e não “ativar”, “catalisar” o espírito dos alunos e dos encarregados de educação. Hoje, para abraçar uma carreira, não chega ter licenciaturas, mestrados, doutoramento ou ser bom profissional, bom artista. As conjunturas políticas, sociais, religiosas, sectaristas, de género, pesam mais do que as próprias capacidades. Muitos colegas sabem isto e resignam a fé que depositaram na arte, na fé nos depósitos bancários, não pactuando com o Diabo (como Fausto), mas sim pactuando com seres de quem o mesmo Demónio foge. Isto é um problema estrutural global. O Baixo Alentejo podia chegar a dar cartas pela sua posição geográfica, pela sua energia positiva, pelo seu espírito resistente, resiliente, por algumas pessoas muito valiosas que estão cansadas de remar nas galeras de algum imperador que enche, dia a dia, os cofres do seu tesouro. O Baixo Alentejo tem potencial humano, tem infraestruturas, tem vontade cidadã. Mas, a meu ver, faltam projetos credíveis a longo prazo que mobilizem, culturalmente, toda a comunidade. Quando a minha filha plantar uma árvore sabendo que será o seu neto a beneficiar da sombra, ela terá aprendido. A cultura é um bem precioso, não se compra, nem se rifa, obtém-se. A educação é um bem precioso, não se compra nem se rifa, obtém-se. Uma boa alimentação adquire-se com o hábito, não se impõe, ganha-se a partir de boas referências, desde a mesa da casa dos pais. A mesma coisa quando alimentamos as crianças com comidas rápidas e doces, e elas ficam desnutridas e apáticas. Quando se alimenta uma comunidade com fogos de artifício, esta será incapaz de querer receber uma dieta completa e saudável. A educação e a cultura têm de estar nas mãos dos melhores! Isto é discriminação? Não! Isto é uma realidade! “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, mas parece ser mais importante para um presidente ou um diretor deixar o seu nome na História do que contribuir para que esta seja protagonizada por pessoas sem nome.

 

Como veio um artista argentino desaguar ao Alentejo? Posso dizer que eu não fui ao Alentejo, mas sim que o Alentejo invadiu a minha pessoa. O início foi entre 1994 e 1995, trabalhando no Conservatório Regional do Baixo Alentejo [CRBA], que funcionava na Casa da Cultura. Em 1995 ganhei o concurso para dirigir a Orquestra Clássica da Madeira, e, até 2001, permaneci na pérola do Atlântico, afastado da planície dourada. Entre 2005 e 2019 não só lecionei no CRBA, como também tentei abrir portas à cultura, dando conferências em diversos locais. Em Beja nasceu a minha filha, em Beja fomos felizes, em Beja temos muito amigos.

 

E porque partiu o artista argentino do Alentejo? Dois motivos principais: a educação musical da minha filha, que segundo a minha humilde opinião, tem talento, ia estar comprometida se ficássemos na capital do maior distrito do país; e os desafios que me impunha o CRBA começaram a ser cada vez menos apelativos. Saí à procura de novas “aventuras”. E acabámos rumando a Norte, onde hoje a Maria Helena está a ter uma educação musical de excelência e gratuita. E eu voltei a uma casa que me impõe uma dinâmica de trabalho muito apelativa.

 

Quais os sonhos artísticos do maestro Roberto Pérez? Chegar com saúde e esperança de vida ao momento da minha aposentadoria, ver crescer e acompanhar o percurso de vida e musical da minha filha e viver feliz ao lado da minha esposa. Tudo isto já é uma arte. Viver é uma arte.

 

O que está na manga? Um dia de cada vez. Hoje acabei uma série de 13 peças para piano baseadas no folclore do Ribatejo. Amanhã verei se começo algo relacionado com o Algarve, e assim preencherei a região que falta. Em janeiro escrevi três pequenas óperas para crianças. Quando a coisa acalmar, gostava de escrever algumas memórias boas do meu percurso em Portugal. Tenho 63 anos e penso que isto acontecerá daqui a uns sete outonos. E nessa altura vou colher os frutos das minhas árvores.

 

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