Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: Vinho e poesia ao encontro de Bocage

29 de setembro 2022 - 10:00
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Depois de ultrapassada a clausura pandémica, o espírito sente-se irremediavelmente confrontado com a urgente necessidade de se evadir, de se libertar da armadura férrea e castradora do quotidiano, para alimento dos prazeres do espírito, entre os quais a poesia e o vinho merecem especial destaque.

 

Como sabemos, o vinho e a poesia, sempre estiveram inextricavelmente ligados, unidos na sua essência por uma relação simbiótica, porque ambos são capazes de tocar a alma humana, não fosse o vinho a própria “poesia engarrafada”.

 

Este texto é inspirado na figura do imortal poeta, que a 15 de Setembro de 2022, fez 257 que nos deixou o desbragado compositor lírico, o poetastro infatigável, o boémio improvisador: “ o imortal corifeu dos cisnes lusos/ na voz da lira eterna alçou meu nome..1” , o inefável poeta, que nos brindou com um vasto legado literário, entre os quais merecem particular atenção, os sonetos, modalidade e que se revela dos mais perfeitos cultores, quer de outros pelouros menos conhecidos, como as Cantatas, as Epístolas, as Odes ou os Idílios. Não houve homem mais popular com o pé mergulhado nos botequins das horas tardias da improvisação repentista e maldizente; nenhum dos nossos caceteiros da pena lhe deitou a barra adiante na impudência, no descaramento, na desfaçatez. A sua verve, a sua facúndia, eram inesgotáveis. Sabia a linguagem das colarejas e rameiras, porque as frequentava; e o calão dos cárceres e dos escombros da Arcádia.

 

E a propósito da efeméride, em homenagem ao insigne poeta, a cidade de Setúbal, acolheu um evento “Vinho e poesia – uma relação improvável“ na casa Bocage, no passado dia 16 de Setembro. A proposta, ofereceu uma oportunidade de unir duas paixões, o vinho e a poesia. O cruzamento entre os versos e o sabor, que se estabeleceu através de uma geometria sensorial única, provocando uma exultação dos sentidos. Como se de repente fosse possível saborear o romantismo da paisagem poética - entre prados vestidos de amenas boninas, entre Zéfiros e Marílias, com o Tejo sorridente ao fundo2. As ninfas entram com a sua coroa de flores e encantam unicamente com o som da sua voz. Os versos bebem-se pelos ouvidos, à medida que se degusta o vinho. E a experiência de ouvir a declamação poética, acompanhado dos vinhos da Quinta da Catralva, é um momento sensorial muito interessante.

 

O pairing proposto, assentou na relação entre as características do vinho, e as fases da vida do Bocage. E, para prefaciar a composição mais burlesca, a leitura de superfície, nada melhor do que um bivarietal composto de Fernão Pires e Moscatel, um vinho jovem, directo, expressivo, muito fresco, a exibir um final ligeiramente pétillant, que serviu para denunciar o tom jovial, quase frívolo do “Incultas produções de mocidade…”; de seguida o nosso palato é desafiado paraum terreno mais complexo, que condiz com a fase mais séria da vida de Bocage, nos escombros da Arcádia, em luta contra “o sanhudo, inexorável, monstro que em pranto, em sangue a fúria ceva…”, só um Quinta da Catralva Reserva, um autêntico “ purosangue” sadino, se mostrou à altura com garra suficiente para sustentar a “ “ Liberdade querida e suspirada, que o despotismo acérrimo condena…”; e, para sossegar a alma dos clamores provocados pela poesia erótica na sua Epistola a Marília: “ D’almas vãs sonho vão, chamado inferno”, nada melhor do que um deleitoso, consolador e ambaresco Moscatel.

 

 

Neste estranhos tempos, que melhor do que avinhar uma tertúlia poética para ir ao encontro do imortal poeta?

 

1 in Antologia Poética de Bocage2 Bocage ( 2004-2005), Obra Completa de Bocage, Vol I, Soneto 21

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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